quinta-feira, 29 de junho de 2017

FALATÓRIO



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FALATÓRIO

Todos falam de tudo
comentam até
a pedra

que lhes caiu na cabeça.

SONS



 Carmen Santaya
SONS

Sentado no alpendre
ouço,
como ouvi ontem,
anteontem,
há muitos anos atrás,
o apito do comboio,
o marulhar do mar.
O silêncio é branco
procura sem sucesso
o relicário
guardando as lembranças
do passado,
os sons as visões,

os sonhos não realizados.

UMA VIZINHA CANTORA



 Carmen Santaya
UMA VIZINHA CANTORA

No prédio onde vivo
há uma vizinha cantora,
a sua voz ecoa
penetra portas, janelas,
senta-se à nossa mesa,
toma o café da manhã,
diz bom dia
e vai-se embora.
Ter assim uma voz
é quase indecoroso,
brincar com notas de música,
enviá-las em correio azul

tornar o dia aberto.

FOGO



 Neves e Sousa
FOGO

Quem  me empresta uma garganta
que grite perto do fogo
o incompreensível que é
enredar-se o Estado em relatórios
para guardar na gaveta.
Que aprendemos no ano transacto
e no outro e ainda no anterior ao outro.
Tiram conclusões
não concluindo nada,
o nada de não pretender
fazer coisa nenhuma.
Ainda há quem acredite,
angarie fundos
escorrendo em mãos
sedentas,
o povo que sofra.
Alguma vez
senhores governantes
se sentam com a consciência
tendo um clarão, uma visão,

o país não é Lisboa.

UM SEGUNDO ANTES DO FIM



 Neves e Sousa
UM SEGUNDO ANTES DO FIM

O que é estar assim
tão perto do fogo,
ver a existência do Inferno,
dar as mãos para morrer.
Não há tempo
quando a salvação não ouve
os nossos olhos a explodir.
Passa num ápice a vida,
as árvores, os animais,
a cão de guarda
que deixou de ladrar.
A labuta, a freima,
o administrar a difícil
pequena firma,
no interior do país,
tudo fica para trás.
Acabou-se, adeus,
os deuses há muito partiram,
sós, desanimados,

teimando ainda amar este país.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

O AVÔ ANTÓNIO

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O AVÔ ANTÓNIO

O retrato do meu avô António,
numa moldura de madeira
feita pelo marceneiro do lugar,
foi amarelecendo.
Um dia,
sem que nada o fizesse prever
estalou o vidro
protector da fotografia.
Desfez-se o conjunto
em bocados no chão.
Acabou-se a sua presença
em cima da mesinha
da sala de estar.
Hoje é uma lembrança,
de pequena estatura,
pouco falador.
A cor dos olhos,
o rasgo dos lábios,
foi a sua herança,
os genes que  carregamos
até que a vida nos permita.
O som da sua viola,
as cantigas ao desafio
foram o rosário que desfiou,

nos embalou enquanto meninos.

O CÉU DEVE SER ASSIM



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O CÉU DEVE SER ASSIM

Da estrada atravessava-se,
a porta era larga aferrolhada,
entrava-se, a sala espaçosa.
Numa mesa de pinho esbetonada
cortava, pesava e vendia
a broa de milho cozida pela manhã,
a avó Maria.
Ao fundo uma balança decimal,
um conjunto de pesos,
era preciso confirmar
os quilos de farinha
deixados pelo moleiro.
No canto esquerdo
as pipas de vinho americano,
fortalecido com ovos e toucinho.
Passado o salão
a cozinha à lavrador,
imponente, robusta,
perfilhava-se a masseira,
o forno, a lareira, o peal
Era eu uma menina assustadiça
de cinco anos apenas.
Ao fim do dia,
nesta casa fria,
acendia-se a lareira,
A avó numa panela de ferro
aquecia a água do banho
Metia-me numa bacia,
esfregava-me com um minúsculo,
cheiroso, sabonete Patti.
Secava-me com um lençol de linho
passado na clareira do brasido.
O céu deve ser assim
uma avó dando banho à sua neta,
em água tépida,
aconchegando-a um lençol quente,
embalando-a até  que adormeça.

A MANSARDA DA AVÓ OLINDA



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A MANSARDA DA AVÓ OLINDA

A casa da minha avó Olinda
tinha uma pequena mansarda
de janelas abertas ao céu.
Levava até ela uma escada,
estreita, carcomida.
Vencíamos os degraus
dois a dois,
sentávamo-nos
numa pequena cama de ferro,
fechando os olhos,
sonhávamos da mansarda voar
até à Estrela da Manhã.
O firmamento era tangível
ao alcance das nossas mãos,
o quarto pequeno limitava,
o céu imenso
só pedia mais uns pontos de luz.

EMIGRANTE



 J. Eliseu
EMIGRANTE

Regressado a casa
depois de vinte anos ausente
há um vazio,
um não conhecer-se
a geografia do espaço
nem o significado do abraço
do parente que o recebeu.
No quintal, as árvores de fruto
cresceram selvaticamente,
a terra emudeceu.
O copo de vinho tinto
caiu-lhe mal
De repente uma saudade do bistrot
onde passou anos a abrir ostras,
a picar ervas finas.
Esta claridade fere-o,
não é de lá, não é de cá.
Num momento vive
todas as estações do ano,
só quer pão de milho
em migas de coentros,
a mão da mãe levando-o
à mestra que lhe ensinou

as primeiras letras.

terça-feira, 6 de junho de 2017

TEMPOS DE SEMENTEIRA



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TEMPOS DE SEMENTEIRA

Os pardais sobrevoam
 os quintais
procurando alimento.
A terra sulcada, negra,
úbere,
aceita as semente
que a fazem fecundar.
Tudo se torna verde,
equilibrado,
não deixou o arado
terra atrás por lavrar.
A água presa de mina
também dá a sua ajuda
para a explosão de criar.
São mãos sujas, calosas,
misturando-se com a terra
que criam jardins e hortas.
Há uma quietude estranha
saída mais da alma
que do corpo suado
a pairar no fim de cada dia

de árduo trabalho.

EMIGRANTE


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EMIGRANTE

Espero que a porta
se me abra,
espero a mesa de carvalho velho,
posta,
com o meu prato favorito:
favas com ovo escalfado:
A conversa atrasada
pela noite fora,
a comida arrefecendo
como sempre.
O tempo perdido
não se alcança,
torna-se fios de eternidade.
Quero abraços,
olhos saudosos,
depois de tanta espera.
Dois continentes é muito
para cansar as palavras,
ditas, faladas,

quando há tanto a dizer.

RESTAURANTE CHIC


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RESTAURANTE CHIC

As ostras foram escolhidas a dedo,
o vinho assinalado,
o robalo com crosta de ervas,
a peso,
a sobremesa, surpresa:
torta de mousse de chocolate,
o café negro e perfumado,
um whisky de malte escocês.
Saboreou-se, degustou-se,
sentiu-se a noite diferente.
A conta a rematar
não era de rir foi de chorar.
Somadas e ressomadas as parcelas,
era só plim, plim, plim
na caixa registadora.
A bolsa ficou mais leve,
o recado estava dado:
há sítios no Porto
barrados aos autóctones
são apenas para turistas

endinheirados.

MAR


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MAR

Sair e entrar
na explosão da praiamar,
invadir o salgado da água,
ficar,
remando contra a maré
onde a água não tem pé.
Divergir dos demais
achando que aqui
é o meu lugar.
O  cheiro a maresia
impregna os cinco sentidos
sente-se que a vida
começou na água.
Forte é o vento
empurrando para a praia
a areia queimando.
Debaixo do guarda-sol
um refresco de limão,
fresco, fresco,
suavizando o calor

neste dia ébrio de Verão.