quinta-feira, 27 de abril de 2017

NÓS



 Alberto Ulloa
NÓS

Um passado houve
que de tão cúmplices
ouvíamos um só coração
batendo compassadamente.
Éramos um com o outro,
o mundo nosso aliado
fazendo e desfazendo os caminhos
a nosso jeito.
O tempo
torna tudo mais confuso,
mais pesado,
os sonhos ficam diferentes,
o pulsar mais desfasado.
Vão-se embora as convergências
cada um para seu lado.
Por ora, nem mensagens são trocadas,
é o ferrete da mágoa,

os dias que nos foram roubados.

GASTO



 Adi Steurbaut
GASTO

O couro do sofá azul
foi-se gastando,
o branco das cortinas
amarelecendo.
Empoeirou-se a louça
nos armários,
esbetonaram-se as sancas,
tudo vai envelhecendo.
O corpo é menos ágil,
as rugas acentuadas,
o cabelo mais grisalho.
Gastámos os dias,
o amanhã tem que ser hoje,
o  futuro um sonho.
Tenho saudades dos que foram,
fazem falta,
antes estorvavam.
Ai vida, contradições,

agora quero, logo não.

PALAVRAS



 Artur Bual
PALAVRAS

Há dias assim:
a cabeça pesada,
o verbo não flui.
Congeladas as palavras,
envoltas em sombra,
dormindo sobre almofadas.
Acordo,
as pereiras frente ao quarto,
floridas em branco,
anunciam Primavera.
Dentro do quatto pequeno
soa uma música dolente,
nordestina, brasileira.
É a última cisma,
ouvir canções estrangeiras.
O vento forte
arrasta a portada da janela,
que bate, bate.
qual relógio antigo
contando as horas do dia.
O galo pedrês
dá ordens no galinheiro
às galinhas poedeiras.
As minhas mãos suadas
  sustentam a casa,
os sentimentos, pensamentos,
a vida.
Sem culpa pelas imperfeições
A custo, custando,
lá saem  as palavras,

engendra-se o poema.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

INTROSPECÇÃO



 Acácio Cainete
INTROSPECÇÃO   

Diante da estupidez
nada nos salva,
sentados na margem da vida
a ver fluir o que devia
estar fechado,
torna-se ríspido o semblante,
covardemente queremos,
sem esforço
que algo divino
derrube a asa negra
pairando sobre a Europa,

velha senhora estagnada.

UM DIA DA PRIMAVERA MOLHADA



 António-Lino
UM DIA DA PRIMAVERA MOLHADA 

O céu repleto
de nuvens baixas,
o vento sopra frio
por cima das orelhas
desprotegidas,
a cidade fecha-se
nos cafés e bares.
O cheiro a inverno
invade a primavera,
as janelas cerram-se,
acendem-se as lareiras.
Este tempo alheio
fruto de ingerências
humanas
irritando a natureza,
é já um anjo castigador

a destruir-nos.

DESCOBERTA



 Lima de Freitas
DESCOBERTA 

Acreditando para lá de nós
tudo é explicável,
o sol, a lua, as árvores, as flores,
os pássaros, o mar, o pôr-do-sol.
A vida é um suspiro,
um ai, um esgar,
uma alegria, um prato de lentilhas,
um manjar, um começar,
um fim  de linha
numa estação desconhecida.
Soprando o vento Norte
lá se vão os planos
traçados a rigor.
Cumpre-se, falha-se,
sonha-se,
depois há o cansaço
por detrás de cada gesto
com frutos.
A eternidade não se gasta,
espera-nos
numa ânsia de partilha.
O tempo que nos é dado,
perecível, impaciente,
incerto, curto,
não acatando falhanços,
contra danças,
incumprimentos de prazos.
Para nosso descanso

temos o resto para lá da vida.