sexta-feira, 27 de maio de 2016

PORTO CIDADE DE PARTIDAS

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PORTO CIDADE DE PARTIDAS

Viver este instante
sem peso
sem estrutura física
levitando
entre a cidade e o mar.
Sentir a brisa do rio
como a sentiram
os cavaleiros de Cristo
que daqui partiram
para Ceuta.
Sentir a labuta
continuada, ritmada,
o cheiro intenso a café,
a luta, a reconstrução.
Das terras de além mar
que foram nossas
ouvir o apelo repetido,
visceral, da partida.
Ir e ficar
mandar notícias das lonjuras,
chorar na hora de chegada,
abafar a saudade fria.
Ciclicamente partimos,
triturados por decisões erradas,
somos empurrados,
suportámos o destino
cantando nas vielas o fado.

FILOSOFAR FAZ PARTE

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FILOSOFAR FAZ PARTE

É agora
que nos encontrámos para falar,
aqui
é onde parámos
para almoçar, confraternizar,
o antes
é molhar pedacinhos de pão
em azeite,
petiscar carapauzinhos fritos.
Olhámo-nos,
vemos o quanto estamos limitados
por estruturas finitas.
Seres vivos descontentes
apenas juntámos em ramalhetes
as dores que nos afligem.
Dissimulámo-nos em risos afectados,
sobrevivemos.
Os sonhos continuam
a soprar aos nossos ouvidos
vale ainda a pena lutar.

PARTIDA

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PARTIDA

Saio de mala de viagem,
o saco de lona a tiracolo,
fecho a porta de casa,
aliso o cabelo,
revejo o corte das unhas,
os dentes foram escovados.
Posso partir.
Ficam na casa dez anos
vividos rebeldemente,
noitadas quentes,
muita bebida à mistura.
Vou trabalhar
num país que me quer,
que valoriza
a minha vontade de singrar,
Adeus casa, adeus cidade,
adeus família, adeus amigos.
Lá longe o dia é menos claro
a minha alma maior.

ESCUTAR

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ESCUTAR

Escutar a linguagem
do fim do dia,
o regresso a casa
contando o dinheiro escasso,
compra-se o frango assado,
o pão, ambos em promoção.
Já nem se liga às palavras,
meio mentira meio verdade,
dos noticiários diários,
o poder capital do dinheiro
vaza-nos os olhos.
À porta de cada país endividado
há um usurário
abrindo escancaradamente a boca
à presa fácil.
Os bancos implodem,
vidas esvaem-se,
no silêncio calmo da indiferença.
Nos escaparates das livrarias
livros expostos
de dietas milagrosas,
corpos esculturais compram sucesso.
Morre o lixeiro
atropelado pelo próprio camião.
Respire fundo, descontraia,
a vizinha do lado
continua a cumprimentá-lo
num sorriso de dentes de cristal.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

ESCUTAR

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ESCUTAR  

Escuta-se a linguagem do fim do dia,
os corpos cansados de regresso a casa,
o mês vai a meio, conta-se o dinheiro,
é comprar o frango assado,
o pão, ambos em promoção.
A televisão ligada, é só companhia,
passam palavras insignificantes,
meias verdades, meias mentiras.
Os olhos são vazados
pelo poder
quando vêem mais além.
Vende-se, compra-se propriedades,
destinos,
em cartórios cozidos em vil metal.
À porta de cada mansão
há um usurário
abrindo a boca à presa fácil
engolindo como a cobra,
num ápice, a vida alheia,
sem remorsos nem comiseração.

GENTE NA CIDADE

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GENTE NA CIDADE  

A velha gorda na esquina
da rua de Passos Manuel
vende pentes, alfinetes,
collans e cuequinhas,
a loura postiça desbragada
na rua de Santa Catarina
vende meias
para homem e criança.
Em dia de futebol,
estrangeiros contra o Dragão
corre tudo ao palavrão.
Os ciganos de saquinho na mão
oferecem óculos contrafeitos
a jovens namorados.
Os pedintes, ah esses abandonados
enxameiam a cidade
fazendo das entradas
de lojas abandonadas
as suas mansardas,
cheirando a álcool e a exclusão.
A velhinha lavradeira
entre Sá da Bandeira
e Fernando Tomás
apregoa com voz débil
molhinhos de salsa e hortelã.
De manhã cedinho,
no largo dos Lóios,
uma vareira à moda antiga,
de canastra erguida,
anuncia peixe vivinho da costa.
Até quando durarão
estes bilhetes postais
de uma cidade antiga,
querendo ser moderna
e ainda tão saloia.

LEMBRETE

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LEMBRETE  

Sabes que estou aqui,
sempre,
para um copo
ou ombro enxugando lágrimas.
O nó que nos liga é tão antigo,
não deslaça,
não embaraça,
perdura
seja sol, seja chuva.
Não pensemos muito,
repousemos só,
ao fim da tarde
debaixo da latada
tão velha como nós.
Olho para ti
olhas para mim
o entendimento é imediato
não são precisas palavras.

DIA DE TEMPESTADE

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DIA DE TEMPESTADE

Silenciosa é a noite
embalada pelo vento forte,
não piam pássaros,
as estrelas escondem-se.
Não é intenso o luar,
as flores fecham-se.
Ribombam os trovões,
riscam os relâmpagos a atmosfera,
abrigam-se as víboras
nos buracos
das paredes viscosas.
Cheira a terra molhada,
como é bom estar sentada
na sala quente
a ver de longe a tempestade
bebendo uma chávena
de chá quente.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

REFLECTINDO

Luís Morgadinho

REFLECTINDO

Pela televisão
recebemos os recados:
não cumpriram o défice
são sancionados.
Comem com o inimigo à mesa
e beijam-no
como cúmplices ou comprometidos.
Fecham as cortinas
de brocado cinza,
ordenam-nos o fim da fila
numa Europa encruzilhada.
Chamam-nos preguiçosos,
dados à boa vida
da Europa evoluída.
A cólera cresce
em caldeirões ferventes,
serve-se em taças largas,
desproporcionadas, épicas.
Os dentes aguçam-se
a fome é só um muro
até à Europa rica.

PASSEIO NA PRAIA

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PASSEIO NA PRAIA

É prolongado
o habitual passeio à beira mar,
o cheiro a maresia
inebria as narinas, o cérebro,
o sal amolece os pés,
perfura a pele e enrija os músculos,
o som do mar infinito
abraça de uma vez os sentidos.
O céu neutraliza-se
nem Inverno nem Primavera,
cheira a maçã assada
com porto e canela,
cães vadios espoliam-se na areia,
na duna mais alta
descendo em direcção à água
um par de namorados desnudos,
amantes surdos ao tempo e às gentes,
grotescamente torcidos
beijam-se apaixonadamente.
Do café Flor do Sal
alguém com voz esganiçada grita:
chamem a autoridade.

ANO SABÁTICO

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ANO SABÁTICO

Murmura-se nas esquinas,
deixa-se a luta de lado,
o trabalho é tão precário
e o medo é grande.
De um lado o sindicato
do outro lado a família,
ganha a boca
que desconhece escolhas.

NOITE NA CIDADE

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NOITE NA CIDADE

A noite estende-se
sobre a cidade,
nos dedos das raparigas
brilham as pedras postiças,
os cabelos encrespados em gel,
os saltos altos,
deus meu como são altos,
dão o tom de marcha na calçada.
As portas nocturnas abrem-se,
o álcool solta-se,
a música berra,
os corpos ondulam,
seduzem,
ainda acabam
onde é preciso continuar
a noite começada.
Sente-se o cheiro a suor,
a boca seca,
a nostalgia do fado
ressoa nas vielas,
as histórias perdem-se
por falta de memória.
Conheço bem as arcadas,
as ruelas, os rios desviados,
os cheiros, o linguajar,
as vozes gritadas,
os jardins nefastos,
os cafés tertúlias fechados.
Ó velha, sempre jovem cidade
renascendo das cinzas
brilhando mesmo na noite
de uma Primavera adiada.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

UM SILÊNCIO FORÇADO

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UM SILÊNCIO FORÇADO

De repente,
muito silenciosamente,
o amor acabou,
o mundo amornou,
 a cabeça descaiu,
a vida desabou,
um cansaço sobressaltado surgiu,
procurou-se no sonho
restos do brilho de outrora.
As mãos torceram-se,
a música tocou na vitrola,
oferta rara
de um casamento distante.
Dançou-se com loucura
em catarse provocada,
pegou-se do frio duas cervejas,
beberam-se num ápice,
a cabeça rodou,
os olhos apagaram,
o sono desceu,
amanhã começa um novo dia.

O PAÍS HOJE

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O PAÍS HOJE

Estes são dias da União Europeia,
Banco Central Europeu,
de modelos programados
às ordens de Bruxelas,
iguaizinhos para as mazelas
dos vários países.
Da inutilidade de novas ideias
saídas de poderes renovados.
Os velhos crânios estão na sala
de volta da mesa computorizada,
a encenar a vida de muitos,
exactamente como dão conta
em folhas digitalizadas.
Caem empresas, não há salários,
Devolvem-se casas aos bancos,
Fazem-se arrestos,
Vendem-se os tarecos em hasta pública
por uma côdea,
corta-se o fornecimento da electricidade,
a água não corre nas torneiras.
Os narizes rubicundos
cheiram mais austeridade.
A Europa não cresce
estagna a Economia
e uns seres ancilosados
dizem: mais austeridade.
Viveremos até ser paralíticos
nesta sombra de não ser.
Perdemos histórias, memórias,
perdemos independência,
desconhecemos a casa que nos acolhe.
Como num enterro
marcharemos silenciados
esquecida a bênção da liberdade.