quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

ROMÃ

Helena Canotilho
ROMÃ
O menino abriu a romã
batendo-lhe com
uma colher de pau.
Não lhe queria
comer os bagos,
queria só e apenas contá-los,
fazer deles um colar
oferenda à sua mãe
que fazia anos.

COISAS DO TEMPO

Tomas Santis

COISAS DO TEMPO  

A fogueira crepita
nesta longa noite de Inverno.
A chuva cai violenta
no tejadilho dos carros
na rua alinhados.
A criança pergunta
porque chove tanto?
Para que serve tanta água?
Os homens pouco sabem,
de sábios nada têm
deixam a água escorrer para o mar
e depois queixam-se da seca.

BOM DIA

Carlos Dugos
BOM DIA

Ao acordar
belas são as pombas
pousadas nos ulmeiros,
as gatas da vizinha
dormindo no alpendre,
o Sr. Zé carteiro 
tomando o pequeno almoço
no café da esquina.
Eu penteando-me
frente ao velho espelho
a claridade de sol
tornando luminoso o dia.
O caderno passado
na mesa da sala,
o poema que pede para nascer.
Linda manhã
atapetando a rua
de mil bugambilias,
bom dia senhor jardineiro
cortando a relva da casa ao lado.
Lindos os homens e mulheres
correndo em direcção ao trabalho,
o azul dos liretes
dançando ao sabor do vento .
A gente da casa tomando
a chuveirada apressada,
a janela fosca
de pó e nevoeiro
rasgando-se para o sol entrar.
Lindo o café que cai
ruidosamente na chávena,
as migalhas sacudidas
da varanda da mansarda.
Hoje acordei assim,

bom dia .

INFÂNCIA


Anabela Mendes da Silva
INFÂNCIA  

Na árvore do quintal
os pêssegos dependurados,
dourados e perfeitos
na proporção exacta
das nossas bocas esfomeadas .
O pardal esvoaçou
e baloiçou noutro ramo,
doutra árvore do quintal,
uma macieira.
Nem sei que sentimentos
eram aqueles,
naquela infância despreocupada,
a imensidão dos quintais,
a liberdade total,
o tempo ilimitado.
tanto ruído: dos bichos,
do cantarolar das lavradeiras,
do chiar dos carros de bois,
tanto silêncio
para extravasar o pensamento
para lá dos pinheiros altos
dos montes circundantes.
O sol a pino,
o suor que escorria,
a leve beleza
do dia simplesmente a acontecer.

A MINHA COMUNHÃO SOLENE

Orlando Falcão

A MINHA COMUNHÃO SOLENE  

Afirmo com todas as letras
que o meu avó chorou
quando eu de bordado inglês
vestida, pequena, inocente,
participei na procissão 
da Festa do Corpo de Deus,
que agregava a nossa Comunhão
Solene.
Abriu-me a mão
em gesto desajeitado
e meteu-me na palma aberta
uma nota de vinte escudos,
vinte vezes dobrada:
não gastes mal gasto,
disse-o numa voz tremida
pela comoção do momento.
Eu chorei depois
nunca havia recebido
tão generosa oferta.
A festança o normal:
a canja fumegante,
o galarote assado,
o pudim francês
feito a preceito pela minha avó
É possível descrever com exactidão
cada segundo, cada minuto
do meu contentamento interior .
Os sentimentos guardo-os no coração
embrulhados na nota
que me deu o meu avó.
Por fim, o retrato,
entre o meu pai e a minha mãe,
em pose convencional
para pendurar na sala
como recordação

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

VIDA 3

Carlos Almeida

VIDA 3

O sol declina no mar
hoje agitado e rude
apontando um horizonte
sem fim nem princípio.
Os barcos vão nas ondas
sem norte e sem regresso.
Um casalinho agastado
apenas com o vento
agarra-se ao murete
beija-se apaixonadamente.
A areia bate forte
nas pernas musculadas
de um pescador furtivo.
O laranja do sol
é mais brilho
nos olhos da pequenada
regressando do infantário.
Ai momentos vividos
na praia da minha infância:
Espinho.
Os picolés de baunilha
escorrendo nas caras
de espanto esbugalhadas.
Os pregões das varinas
vendendo camarão da costa
em canastrinhas encantadas.
O coração batendo apressado
soltando os sonhos
de um amanhã demorado.

VIDA 2

Mary Carmen Calviño

VIDA 2

Enquanto alguém
destila ódio
porque é ódio,
eu olho a natureza
e digo: é belo o que vejo.

VIDA 1

Carlos Dugos
VIDA 1

Ergo-me
é o que me assiste
enquanto me restar o fôlego.
O espaço que separa
a cozinha da cama é pequeno.
É preciso o café
de subtil aroma
e as torradas
de azeite do Doiro.
A noite foi calma
sem pesadelos,
sossega o corpo
para o novo dia
que se avizinhava.
Escolho palavra a palavra
para o poema a fazer,
o poema com que
me levanto.
Bom dia vida,
bom dia a mim
que respiro
apesar das notícias
dos jornais.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

DESPERTAR


Gilberto Lopes
DESPERTAR   

O desenho da luz
do nascer do dia
marcou as janelas
da sala de jantar.
Iluminou-se toda
como se estivessemos
numa cidade sem noite:
Paris .
O sol marcava
o romper da aurora,
a jornada que começava.
Cada um escapuliu-se
para o trabalho
que lhe era destinado:
estudar ou labutar,
a mãe dizia: é preciso trabalhar.
De repente o céu
Pintou-se de nuvens,
borrasca anunciada ?
o vento frio incomodava,
procuram-se agasalhos.
Cuidado com as correntes de ar,
pedia a minha avó velhinha.
Depois voltava o silêncio
àquela casa,
cortado pelo cantar do galo
e pelo gato que miava.



segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

INVERNO

JORGE RODRIGUES




INVERNO 

No Inverno
o nevoeiro tapa os olhos,
o vento desmancha os cabelos,
deixando-nos agastados .
As árvores despidas, sem folhas,
apodrecidas em cima dos lajedos.
Os guarda-chuvas atrapalham
a chuva miudinha e certa
penetrando até à medula
nas ruas meio desertas.
Os meninos da escola
passam agitados
para ver uma peça infantil
no teatro Rivoli
A natureza atira-nos
os elementos funestos
vá lá aguentá-los
são da época .