quinta-feira, 26 de junho de 2014

GAIA

António Joaquim
GAIA

Na cidade de Gaia
há também poetas
vivendo junto do rio,
embarcando no cais
da vida
partilhado com o mundo!
Na bruma intensificada
à noitinha,
escondem as lágrimas
escrevendo um poema!

ERRADO

Alvarez
ERRADO

Alto,
ossos bem equilibrados,
braços regulamentares
para puxar da enxada,
deram-lhe o trabalho
insonso
de atender todo o dia
o telefone
fechado num cubículo!

POLÍTICOS

Rafael Bordalo Pinheiro
POLÍTICOS

Vêmo-los apressados
com sorrisos velados
a caminho do  Parlamento,
dos Ministérios,
saindo de carrões pretos,
conduzidos por motoristas,
fardados a rigor!
Falam exclusivamente
para as câmaras de filmar
dando recados do poder,
ignorando o povão
que de lado grita:
estamos fartos!
São inúteis
como as suas palavras
gastas,
há anos que os vemos,
sempre os mesmos,
embora de quando em vez
mudem as caras!
Levaram-nos ao lodaçal
com toda a ligeireza
e agora não sabem
como saír da lama
em que nos prenderam!
Em que escola se formaram?
Neles é tudo vaidade:
fato único,
gravata a condizer
com a camisa Versace,
o sapato italiano!
Forjam-nos como se fossemos
marionetas
e exigem
ajoelhem
diante de tanta majestade!

ACUSAÇÃO

Rafael Bordalo Pinheiro

ACUSAÇÃO

Acusadores apontamos o dedo:
são eles
os que nos tiraram o pão!
Está ao nosso alcance
derrubá-los do pedestal,
no entanto deixámos
que continuem a roubar-nos,
doridos
na nossa inépcia
estorvando o nosso querer!
Arriscado é agir
mas a vida é um risco
desde que nascemos
até morrer!

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A NOSSA EXISTÊNCIA

Júlio Pomar
A NOSSA EXISTÊNCIA

Tudo começou com Adão e Eva
no paraíso,
pecando,
entrou-se no mundo real,
trabalhar para comer,
sobreviver entre as feras,
manter as bocas fechadas
diante da humilhação
perpetuada pelo patrão,
capataz,
chefe,
dirigente,
ministro
e até do cão
mijando
no nosso portão!

O RELÓGIO VELHO

Salvador Dalí
O RELÓGIO VELHO

O relógio do avô António
marcava um tempo
já escasso,
os abraços que nos dava
eram o último elo do baraço
que o prendia à vida!
Tinha sido menino
com olhos cor de avelã,
rápido e ladino
saltou o destino
para conquistar minha avó!
Velho e cansado
porque as forças lhe faltavam
regia tudo pele relógio
de pulso!
No dia da sua partida,
cheio de nostalgia,
apontou para o relógio,
perguntou pelo café da manhã
e queria partilhá-lo
com a minha avó
que o deixara no ano transacto!
Eu já mocinha feita
olhando o jardim sem ver
filmei-o no meu olhar
para aí permanecer!

DIA ESPECIAL

Pilar López Román
DIA ESPECIAL

O Lino
que todos conhecem,
pôs gravata azul bebé, 
fato cinza escuro,
sapato preto!
Penteou o cabelo
com risca ao lado,
enformou-o
com brilhantina
vibrante!
Colocou no bolso
 do casaco,
um lenço impregnado
de água de colónia,
cheirando a mar!
Sentou-se muito direito
num banco de jardim,
de ferro verde
e esperou pacientemente!
O corpo balançava
à medida que o tempo
passava,
nem a natureza o distraía
dos passos  que queria
ouvir na gravilha
dos passeios do jardim!
No arrastar das horas
a gravata foi caindo,
o fato enrugando,
o suor empapando
o corpo e a alma!
No exacto momento
em que desistia,
uns tacões ruidosos,
trouxeram o mundo,
pousaram imóveis
os seus olhos profundos,
nos azuis da mulher
amada!

MEDITAÇÃO

Patrícia Filardi
MEDITAÇÃO

Hoje é um dia meu
quero-o espaçoso,
para me espreguiçar,
não pensar!
Olho através da janela
e as alfaias alinhadas
esperam a minha vontade
de as usar!
Preguiça, é o que eu digo,
os quiabos, nabos vermelhos
e abóboras  anãs,
podem esperar!
O segredo da germinação
é um deus,
acostado ao barraco
onde guardo
de um ano para o outro
úberes sementes !
É uma forma de amor,
cavar,
e alisar a terra ardente
que desenvolvendo o mistério
da criação,
em poucas semanas
rebenta em frutos
prontos a comer!
Extasiados estão os meus olhos
perante a beleza
de um campo multicor,
há que fazer a colheita
e  usá-la com descrição
diante da fome
que nos confunde!

sexta-feira, 13 de junho de 2014

NA MINHA INFÂNCIA

Collado
NA MINHA INFÂNCIA

Na minha infância
passada numa aldeia rural,
as velhas sentadas à lareira
aqueciam-se do frio,
esqueciam-se da violência
do marido,
contavam histórias medonhas
de cavalos sem cabeça,
lobisomens
levando com eles
em dias de lua cheia,
meninas solteiras,
luzes voando do cemitério
para assustar
moradas abertas!
Eu tremia de medo,
persignava-me,
rezava um Padre Nosso
e uma Avé Maria
como me ensinara
a avó Olinda,
afastando por ora o mafarrico!
Os olhos das velhas eram tristes
como a sua vida
a criar filhos,
e, a apanhar porrada de criar bicho!
Com a fome por companhia,
era na igreja,
no padre de voz rouca
e sábia
que tinham algum refrigério,
mesmo sem perceber
o que ele dizia,
lavavam a alma!
Algumas suicidavam-se,
mas disso
nunca se falava!

AMIGO

Collado
AMIGO 

Sou amigo
de todos
que sem gritos,
de manhã cedo,
saem para o trabalho
mal remunerado,
e à noite contam
o pão que podem comer!
Prescindem do autocarro
fazendo alguns  quilómetros
a pé,
levam a marmita,
enfadonha,
sempre com o mesmo guisado,
e, ao entardecer,
sorrindo,
brincam com os filhos!
Mostram-lhes as estrelas
e afirmam:
com esforço chegámos lá!

MOMENTOS

Collado
MOMENTOS

Hoje,
passados  muitos anos,
vendo de dentro
a vida que passa lá fora,
dou mais valor
à refeição simples
que como
sentada na cadeira velha,
à fatia de bolo de chocolate
oferecida pela vizinha
do primeiro direito,
à árvore que floresce
todas as Primaveras,
a ti que me acompanhas
no Verão e na borrasca!

NA CIDADE

Collado
NA CIDADE

Pelas seis da tarde
tudo é mais frenético,
as raparigas de cabelos
bem penteados,
olhos negros
marcados a eyeliner,
saltos altos
a afirmar as pernas
modeladas,
malas coloridas
imitando marcas consagradas,
correm desvairadas para o metro
que as transporta a casa!
As donas de casa
vergadas ao peso
dos sacos de fruta
e verduras,
já cansadas por um dia de labuta,
pensam devagar, na refeição última,
esperada
pela família esfomeada!
Jovens barulhentos,
vestidos com jeans
à medida da sua bolsa,
tshirts estampadas
com ídolos pop,
bebem nas esplanadas
dos bares,
um fino gelado!
Se há futebol,
come-se francesinhas
e batatas fritas,
no café marcado,
a vitória é colectiva,
o jogo uma catarse
anunciada!
Os turistas sorridentes
fotografam tudo:
D. Pedro IV,
os pombos que nas mesas
da confeitaria Ateneia
comem as migalhas,
a mendiga maltrapilha
que pede e chora
na esquina do Hotel das Cardosas!
Sentado no café habitual
queria fazer parte
de todo este bulício,
continuo só e triste,
à espera que alguém repare
que eu existo!