quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O SILÊNCIO FALA

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O SILÊNCIO FALA

Calados, sisudos,
meditando no canto do sofá
da sala,
bebendo um cálice
de aguardente de medronho,
atordoados,
não mortos!
Dizer que estamos conformados
é uma retórica,
votámos,
manifestamo-nos,
dizemos dentro e fora de portas :
os maus governos passam
o povo fica!
Heróico povo
começando sempre do nada,
erguendo o país,
que outros tantos vampiros
vão ainda destruir!
Gostam de peças de música clássica
passada em electrónica cara,
rejeitam a música popular,
a comida tradicional,
as mãos de quem trabalha,
o berço que nos embalou,
nós, no entanto, somos mais
as nossas vozes chegam mais longe!
Chove este Verão intensamente,
a banca implode,
não fugimos, resistimos!

NOITE

Collado
NOITE

Escura, silenciosa,
uma leve brisa
solta-se do rio,
enrola-se no pescoço
das raparigas
saindo das discotecas!
Como um sinete,
crava-se na carne tenra,
pede-se um agasalho!
Os sinos das igrejas
soam mais pungentes,
senta-se gente
na escadaria
do último café aberto,
bebe-se a derradeira cerveja amarga!
Nos antros das vielas
gemem os sem abrigo,
a cidade alberga
a sorte e a miséria!
O céu e a terra
fundem-se por instantes,
acaba a noite,
rompe o dia,
Avé-Maria!

FAZEDOR DE POEMAS

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FAZEDOR DE POEMAS

Escrevo o que ouço,
fragmentos de conversa
ouvidos à hora do café
nos estabelecimentos da baixa,
nas ruas apinhadas da cidade,
nas vozes agudas
das vendedeiras ambulantes!
Junto o puzzle
com peças dispersas,
a figura central é gente,
gente viva,
gente ardente
cantando o acontecer
visto das  velhas varandas
da cidade!
Falo da amizade,
da perspicácia,
da eternidade,
da morte
do fogaréu
que há muito acendeste
no meu peito!

GERAÇÃO 70

Collado
GERAÇÃO 70

A geração de setenta
que frequentava a faculdade
e com gritos calados
combatia o regime,
era inquieta,
desejosa de mudança,
queria um mundo novo!
Pensava-se que mais uma geração
teria de combater a ignorância,
a exclusão,
espantávamo-nos com a dormência
dos trabalhadores, em geral!
De repente, a explosão,
em cada rua nasceu um cravo
e jorrou revolução!
Nasceu alegria, fogo fátuo,
multidões,
bandeiras, ocupações,
distribuição, loucura,
caminhos abertos,
esperança, choro comovido,
o coração a rebentar no peito!
Hoje, calados, vexados,
agaxados ao medo
perdermos tudo,
vomitámos ódio,
esquecendo-nos de construir
futuros novos

terça-feira, 19 de agosto de 2014

ESPERANÇA

Fidel Latiesas
ESPERANÇA

Venha o dia,
cinza ou resplandecente
acordado em certezas,
desvendada a cobardia
que nos amarra
ao nada!
Venha o dia
bem marcado
onde simplesmente
possámos ser nós
sem virtude nem pecado!
Venha o dia
em que não seja  inconveniente
cumprimentar o vizinho do lado
que cospe nas escadas
e tem um cão que ladra!
Venha o dia
onde toda a certeza
seja apenas
que amámos!

MAIO

Collado
MAIO

As cerejas vermelhas
pendem dos ramos vergados,
 os pássaros  comem
as bagas das romãs
que não foram apanhadas,
as maçãs crescem lentamente,
o corpo acompanha a natureza!
Mariana colhe o míscaro
do desejo
e olha fundo
no olhar do companheiro!
Todo o espaço é alma
acendem-se centelhas
nas mãos molhadas!
Tudo reluz,
o sol, as cotovias,
os cataventos, o espelho veneziano,
a pele doce, a saudade de ti!

EXPLICAÇÃO

Carlos Almeida
EXPLICAÇÃO

Explicar-me quem sou
é impossível,
sou um turbilhão
entre a realidade e o sonho,
mais convulsão que estabilidade!
Não há explicação
para o inexplicável,
nasci onde não devia,
sou o que não devia ser!

FIM DE CICLO

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FIM DE CICLO

O rosto é o mesmo
no leito da morte,
mas o silêncio é tão vazio
a espiar o fim de vida,
causa arrepios
maléficos,
insustentáveis!
Treme tudo,
sussurram-se palavras sem sentido
no crepúsculo do fim!
Nada faz sentido
quando o corpo perece,
estremecendo levemente
no último sopro de vida!
O falcão domado
ao longe espreita,
será o pássaro que leva
a essência até ao outro lado!
Sufoca o grito,
sufocámos nós 
numa tumultuosa homenagem
a quem nos deixou sem ais!

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

SACRIFÍCIO

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SACRIFÍCIO

Só os pobres
são sacrificados nos altares,
fazem jorrar o seu sangue
para saciar os deuses,
arrancam-lhes, hoje, o suor
para alimentar
a voracidade dos banqueiros!

DRINK

Collado
DRINK

Mamede velha
de lábios tingidos de vermelho,
meia de seda
riscando o meio da perna,
senta-se todos os dias
na esplanada vintage
do café Magestic
pedindo um gin tonico
com gelo e solidão!

DEUS

Victor Silva Barros
DEUS

Deus quase sempre está surdo,
na pouca audição que lhe resta
ouve só os meninos ricos,
dá-lhes amor, carinho,
boas casas, comida colorida,
roupa de marca, colégios certificados,
livros premiados, professores doutorados,
médicos prestigiados, viagens organizadas,
concertos memoráveis,
aos meninos pobres
manda-os para os bairros de lata,
e esperar na fila da Legião da Boa Vontade
por um prato de comida!

UMA CONVERSA APRAZADA

Collado
UMA CONVERSA APRAZADA

Queria tanto
conversar contigo
com palavras cuidadas,
tu entendias-me,
eu ficava perplexa
com a clareza
do verbo que produzia!
Pedia-te perdão
de tudo o que não declarei,
o quanto te amava,
as alegrias repartidas,
as refeições programadas,
as noites calorosas,
os Verões amansados!
Fico contente agora
se estiveres contente
com esta confissão tardia,
com o aroma do nosso jardim,
com a calma do sítio onde morámos!
Somos nós,
com as lágrimas,
os suores,
as infusões, os licores,
os abraços, os arrufos,
a lua a descair no nosso colo!

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

VISÃO DA COZINHA

Victor da Silva Barros
VISÃO DA COZINHA

Da cozinha gasta
por muita confecção de comida
e muita vida vivida,
vê-se a velha tangerineira,
robusta,
que ano após ano
floresce
e se enche de fruta madura!
A minha mãe
que partiu recentemente,
bem a distribuía
em saquinhos iguais,
com o mesmo peso,
a mesma medida
pelos seis filhos
com que presenteou a família!
A tangerineira ficou
a lembrar que se foi
quem a regou,
podou,
continua pujante
para fazer sentir
o valor de repartir!

MORTE

Sá Nogueira
MORTE

Todo o esforço é inútil
diante da morte,
o trabalho produzindo frutos
pressupõe vida!
Vive-se a existência,
minutos, horas, dias,
viagens, festas,
casamentos sacramentados,
baptizados, funerais,
Natais, jornadas culturais,
feiras, mercados,
descanso em estâncias balneares,
curas em termas,
entradas em hospitais!
Caminhos longos outros curtos,
risos escancarados, lágrimas,
suores, fragilidades,
força, luta,
que a existência  é curta!
Na força da vida
a eternidade é a meta,
a idade avança e
sentimos a finitude
de tudo!
A morte cerca-nos
desde que nascemos,
a sua chama ardente
um dia há-de levar-nos!
Comove o silêncio do fim,
tudo se apaga,
ficaremos apenas
enquanto nos amarem,
enquanto se lembrarem de nós!