terça-feira, 16 de junho de 2015

ESTUDANTES

Umberto Boccioni

ESTUDANTES

Vinham em bando
pelo fim da tarde,
sentavam-se
nas mesas antigas
do café Piolho.
Fardados a rigor
riam de coisas banais,
contavam a última
das conquistas,
uns zunzuns da política,
a chatice da guerra colonial.
Chamados à razão
depois da queima,
preparavam os exames,
lendo e relendo
as sebentas gastas.
Pelo meio da tarde
faziam uma pausa,
olhavam com doçura
as namoradas,
pespegavam-lhe de leve
um beijo carinhoso
na boca rosada.

PEDIDO


Collado

PEDIDO

Olha-me
com esses teus olhos verdes
onde as lágrimas tremem
e não caem.
Verde desmaiado
como um limão
que o sol não tingiu.
Fixas-me
com as esmeraldas do teu olhar,
frias, paradas,
iguais a uma criança
sem infância.

DIA NO CAMPO

Collado

DIA NO CAMPO

Eram duas da tarde
de um dia escaldante,
no horizonte
filas de trigo
ondulante.
Cerrava-se os olhos
a uma luminosidade
bravia,
eu ajoelhada
tirava ervas daninhas
de uma horta
que não será minha:
No fim da jornada
apanhava-se amoras,
doces, sumarentas,
olhando sentidamente
o sol a declinar.

PERCEPÇÃO

Collado

PERCEPÇÃO

Hoje sou eterno
não penso na morte,
mero facto estatístico!
Sei o que sou,
quantos dias preciso
para fazer acontecer
um cálculo quântico.
Percebo o mundo,
as dificuldades de viver
com a serenidade precisa,
sei o significado da existência!
As palavras dão-nos sempre
qualquer coisa,
amarram-nos
como a terra os frutos.
A liberdade é um facto,
a troika não existe,
somos pássaros,
não mordemos a língua,
temos orgulho,
somos portugueses!
Renascer de raiz,
começar,
lutar todos os dias,
ainda somos capazes?

CIDADE

Collado

CIDADE

A cidade em camadas
estende-se do cimo da colina
até ao rio,
reflectindo o casario
na água parada!
O vento sopra de Espanha
e leva em cascata
as folhas multicores
das árvores,
deslizando até à foz.
Passam barcos de recreio,
famílias de polichinelo
fotografando a bruma do rio,
as gaivotas planando,
as pontes novas e velhas.
Não captam a história,
a alma, os pregões com raça,
o linguajar castiço
e o feitiço mouro
envolvendo muros,
velhas quintas,
a morte
dos barcos rabelos.

terça-feira, 9 de junho de 2015

FIM DE TARDE

António Palolo

FIM DE TARDE

Estavas sentado no muro velho
musguento e negro,
esperavas-me certamente,
tiraste do alforge o vinho fino,
no côncavo da tua mão
pousei a boca,
sorvendo a doçura da vindima.
Estreitas-me contra o teu peito,
bati apressado no teu coração
pedindo licença para ficar.

INCÊNDIOS

Albano Neves e Sousa

INCÊNDIOS

Sua-se ao sol do meio-dia,
só a água refresca,
anseia-se sombra,
o dia tornou-se num inferno.
Tudo arde,
reconhecida a negligência,
a ausência de determinação,
não vinga a floresta.
De repente, o verde,
é um deserto com cinza.
Nem alimento, nem  riqueza,
só pó triste.

PALAVRAS


Collado

PALAVRAS

As palavras,
o encontro, o desencontro,
o descanso, o refúgio.
Um cavalo veloz
não parando nas portagens.
Um suspiro, uma reza,
candeia alumiando
o escuro de caminhos .
As palavras,
caem lentamente no papel,
escorrem, espalham-se,
conectam-se,
nasce a mensagem.
Perdem-se
entre o cérebro e a caneta,
de repente,
saltam para o último
raio de de sol
e fazem nascer o poema.

CASA

Collado

CASA  

A casa plantou-se
junto
de um espelho de água,
aberta às árvores,
aos pássaros,
a todos que a querem.
Ao fim da tarde,
sentada na mesa grande,
tudo embriaga.
A caneta gasta
que escreveu toda a semana,
poesia agitada,
o odor das flores de laranjeira,
o verde das maçãs,
o despertar do Verão.
O sol bate, agressivo,
queima a pele,
enche a alma.
Sorvo a doçura
do silêncio que se pôs
e a paz descida numa asa
de cristal.
Há um rumor de mar,
a envolvência de uma tarte
de chocolate e framboesas,
vermelhas como sangue.
Trincá-la devagar,
a boca confundindo-se
com desejo,
o peito aberto ao dia,

existo certamente.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

LAMENTO

Collado

LAMENTO

Esperei-te todo o dia,
perfumada,
cabelo arrumado,
enfeitado
com uma rosa encarnada.
A porta entreaberta
facilitava a tua entrada,
à socapa,
sem o visionamento
do meu pai.
Tudo em mim cintilava
esperando ansiosamente
a tua chegada.
Passou o dia,
passou a noite,
mais uma vez falhaste,
perdi a vontade de amar-te.

NOITE SECRETA

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NOITE SECRETA

O calor avassalador
queima a janela do quarto,
o vento é fraco,
nada acalma dois corpos
alados.
Da boca ao colo
um fim do mundo
anunciado.
A sede é tanta
volteando a água fresca.
um rumor de vulcão
activo,
tão misterioso
como o princípio de tudo,
a explosão é o que resta
no último acto da criação.

DIA DE SÁBADO

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DIA DE SÁBADO

Amar-te assim sentidamente
entre o húmus húmido
e os damasqueiros em flor.
Beber uma taça de água
com cascas de limão.
Ouvir música decadente
dos anos oitenta
num silêncio fabricado.
Contar
com os lábios queimando,
cada beijo
dado na despedida.
Fazer um café fraquinho,
quente, amargo,
adoçá-lo com mel de urze.
Saber que as estrelas no céu
permanecem
para lá deste sábado
e do próximo domingo.

UM DIA DE INFÂNCIA

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UM DIA DE INFÂNCIA

De nós ficaram
Verões sadios,
nadando nus
nos redemoinhos
do límpido rio.
Brincadeiras inocentes
nas margens sombreadas,
pedras atiradas
empurrando nenúfares.
O medo não toldava
e saltávamos
mergulhando à procura
de peixes acossados.
Em casa,
na mesa de pedra
espreitando no jardim,
havia sempre um prato
de figos pingo de mel,
broa escura, de centeio,
fatias de presunto negral.
Ficou a sede de infinito,
o querer sempre mais,
o nadar para além do rio,
o embarcar nas marés.

NATUREZA MORTA

Collado

NATUREZA MORTA

Brilham
os teus olhos azuis,
fundindo-se no regato,
pacato,
serpenteando mansamente
a nossa aldeia.
Os gomos de tangerina
num xarope de açúcar e canela
enfeitam o prato
esperando a boca,
seu destino.
A geleia vermelha de marmelo
desliza no pão de mistura,
saciando-nos na merenda
merecida
preparada pela avó Maria.
Uma luzinha no telhado,
é o quarto na mansarda,
onde tenho a minha cama.
Observatório improvisado
das noites estreladas
passando tu na estrada
balançando no vestido
de papoilas coloridas.
Cantigas desfiadas
em vagas
de saudade e ousadia.