quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

IGNORÂNCIA

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IGNORÂNCIA  

O que me dói
é que se morre
no total desconhecimento
que têm de nós!

SOBRESSALTO

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SOBRESSALTO  

Vi-te de repente
através da vidraça suja
do meu quarto!
Não sei se eras tu
se eras o pássaro
que de rompante
tocou na janela!
Compreendi,
ali,
que era contigo
que queria estar!
Corri
para dentro
do teu olhar
e fiquei
com vontade de voar!

QUOTIDIANO

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QUOTIDIANO  

Sobe da chaminé
um rolo de fumo espesso,
a avó Olinda
reacende como sempre
a lareira,
logo pela manhã!
Põe o púcaro negro
ao lume,
fervendo a água
pura do poço,
com uma colher de pau
envolve o pó de café,
até que o líquido
se torne viscoso!
Aferventa o leite 
gordo
da vaca Martinha
e torra na trempe velha
fatias de pão de milho,
cozido no inicio da semana !
Borrifa-as com azeite
maduro
aromatizado com alho
e alecrim!
Que festim
numa casa pobre!
A lavoura dura espera,
a enxada pesa,
é hora de regar a horta!

PASSEIO

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PASSEIO

Gosto de percorrer a cidade,
ser errante
olhando os velhos edifícios,
pensando
na vida a realizar-se
nos cómodos apertados,
nos silêncios das águas furtadas
onde as serviçais
se banhavam
em tinas redondas
depois de servir as amas!
Nas ciladas perpetuadas
nas escadas sinuosas
onde à força
se abusava das criadas!
As parteiras
aparando bebés rechonchudos,
das patroas e das servas,
uns acarinhados com mordomias,
outros entregues na roda
do mosteiro da Avé-Maria !
Tudo está colado
nas paredes decrépitas,
à noite alguns fantasmas
debruçam-se nas varandas
ferrugentas,
brindando com Porto velho
a um passado burguês
glamoroso!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

NOTÍCIA DE MORTE

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NOTÍCIA DE MORTE

Hoje,
manhã serena de Outubro,
um denso nevoeiro
trazendo a manhã ,
soube que morreste!
Como pode morrer-se assim,
sem aviso prévio,
na flor da idade?
Algo sinistro aconteceu,
os deuses distraídos
não olharam por ti!
Nada aconteceu
que já não estivesse previsto,
a não ser a tua morte,
improvável,
deixando em todos
uma saudade, comprida,
grande como os caminhos
que te faltavam percorrer!

OLHAR

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OLHAR  

Olhei-te ao acordar,
não és tu,
alguém que surgiu do nada
iluminando o espelho
da mansarda!
Abro a gaveta da cómoda
tão ordenada, tão arrumada,
um relógio Ómega, antigo,
cheio de patine,
colo-o  no teu pulso,
vejo as horas:
nove e dez,
tardio é o amanhecer!
Tomo o pequeno almoço
contigo,
o teu  palato é o meu palato,
o café negro na tigela,
o pão barrado com manteiga
e uma rosa amarela,
esquecida,
na jarra de cristal!
Há o tempo, o repasto
e tu somente!
Olhos brilhantes
comandando tudo,
o mundo,
a minha voz,
quebrando os aluquetes
de prisões insustentáveis!

O NOSSO MUNDO

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O NOSSO MUNDO  

Somos estranhos
na nossa rua,
no nosso prédio,
na nossa sala!
Ligámos a televisão,
digitamos mensagens.
muitas,
enviamos emails,
postamos no facebook,
temos amigos virtuais,
falamos com desconhecidos!
Devoram-nos com perguntas,
querem a todo o custo
a nossa intimidade!
Loucos,
desperdiçámos os afectos
que estão a nosso lado!
Sós,
continuámos sós,
em redor de palavras,
ocas,
gestos indignos,
abismos profundos!

MESA DE NATAL

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MESA DE NATAL  

Sentados ao redor da mesa
engalanada,
com uma toalha vermelha
herdada da avó Luciana,
deixámos o deserto iminente,
comemos com vontade
o bacalhau cozido
com batatas, penca,
ovo, grão,
embebido em molho de azeite,
cozido por breves segundos
em lume brando!
O vinho  tinto servido
é de boa colheita,
sobe à cabeça,
desperta o verbo!
Há sempre quem se queixe
da vida,
do escasso dinheiro,
do filho que não aproveita
a oportunidade oferecida
de ser doutor um dia!
Mas bom, bom,
é ver os olhos que brilham,
vergados à tradição,
o amor servido
em travessas de rabanadas
de mel!
As velas que devoram
o cerrado escuro,
a tua mão pousada
no meu ombro,
afugentando bruxas,
enguiços!
Voámos nas asa do tempo
até à luz,
levámos os ventres
de todas as mães,
que em qualquer dia
pariram meninos,
na absoluta certeza
que salvariam o mundo!