terça-feira, 27 de outubro de 2015

PAISAGEM URBANA

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PAISAGEM URBANA  

Na rua de Santa Catarina
um saxofone toca,
um palhaço com balões
faz papões
que vende aos papás da criançada,
a menina da perfumaria
dá a cheirar
a última fragrância de Givanchi,
uma garota linda
transforma a sua boca vermelha
na notícia do dia,
 os turistas curiosos,
percorrem a artéria devagar,
porém é inevitável,
junto do Café  Majestic, páram,
para o fotografar.
Sentada noutra esplanada,
só queria o balão azul,
na mão da criança loura,

para voltar a brincar.

FIM DO DIA

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FIM DO DIA

A hora é de descontração,
pelo fim da tarde,
no Verão,
as senhoras finas
levam as crianças ao parque,
passeiam-se de lá para cá,
de cá para lá,
mostrando as blusas
de seda fina,
as sandálias vistosas
de autor.
O melhor está para vir,
uma fica no jardim
a promover a brincadeira
da criançada,
as outras, muito in,
vão ao salão de chá da moda.
O tempo mudou,
pedem  vodka com laranja,
passeiam, a sua vida pessoal,
seus amantes,
pela mesa de mármore
tão  ART DECO.
Os seus vazios
são iguais aos silêncios
dos embasbacados empregados,
passando apressados,
imponentes,
no seu avental negro,
e  destreza a transportar os copos.

LEITURAS PERDIDAS

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LEITURAS PERDIDAS

Sentado no terraço, leio
e aquela leitura
não me dá alento.
Canso-me, alheio-me,
são guerras psicológicas,
pior que as do sangue,
das feridas.
Para que serve rasgar,
de propósito,
a alma,
se a vida se encarrega disso.

FIM DA LINHA


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FIM DA LINHA

Pequenas partículas
de folhas rasgadas
correm na levada
a caminho do nada.
Cartas escritas,
apaixonadas,
restos de vida
agora apagada.
É triste o fado
quando tudo acaba
num desassossego
nunca superado,
Ficou em mim
um sentido choro,
o coração a rebentar
com saudades do passado.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

CONSTATAÇÃO

Almada Negreiros

CONSTATAÇÃO  

A direita
anda de cabeça perdida,
ganhou as eleições
perdeu a maioria.
Por uma migalha de votos
é forçado
a sentar-se
à mesa das negociações
com o rival da oposição.
A gentalha mal agradecida
roubou-lhes, por pouco,
o ter de novo a nação na mão.
Valha-os Deus,
não foi falta de missas,
o que falhou?
Não consertam,
ao contrário,
desdenham, apoucam,
ignoram as demais forças,
esquecem a democracia,
foge-lhes o pé
para o chinelo,

não querem outras soluções.

LAMENTO DO EMILINHO NUM DIA DE PERDA TRISTE

Almada Negreiros

LAMENTO DO EMILINHO NUM DIA DE PERDA TRISTE  

O copo azul, imenso,
está vazio,
enchê-lo-ei de vinho tinto.
Beberei
até entorpecer os sentidos.
Quem se lembrará
deste dia iníquo
em que te perdi?
Já não te espero,
já não te sinto
quero apenas esquecer

que existo.

DOURO

Almada Negreiros

DOURO   

Atravesso este rio,
as margens brilham
com os últimos raios de luz.
As velas já não navegam,
são reclames vibrantes
do vinho generoso,
arrancado às rochas firmes
do Alto Douro.
As gaivotas em largada
revoltantes
querem a derradeira refeição.
Os bares ruidosos
servem shots
a seguir a shots,
à rapaziada do leste,
à rapaziada do norte.
Há sombras no cais,
ouvem-se os últimos ais
dos amantes furtivos.
Um velho navio
solta-se do lodo,
zarpa do porto

e parte à procura do futuro.

O CASAMENTO DA ELSA

Almada Negreiros

O CASAMENTO DA ELSA  

A igreja tem trezentos anos,
o ouro do Brasil dourou-a,
mas é modesta,
o único luxo é a talha.
Espera-se a noiva,
acendem-se as velas
no altar da Virgem,
padroeira do enlace.
A chuva cai com força,
dizem que dá sorte.
O senhor abade
resmunga do atraso,
o fotógrafo
apronta a máquina
e a menina das alianças
pendura uma no nariz.
O sacristão baixote
e barrigudo, espreita,
no adro não se vislumbra
a noiva.
Alvoroço,
desce solenemente a moçoila
da limusina alugada,
branca e bela,
bela e linda,
comove-se a mãe e o pai,
desce uma lágrima furtiva.
O coral afinado
canta a Avé Maria de Shubert.
O anjo da guarda da Elsa
está ali,
e  a avó Ana
que morreu o ano passado
dá-lhe a mão,
entram no templo,
é preciso celebrar

o casamento da neta.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

DEOLINDA

Anita Malfatti

DEOLINDA  

Recompõe-se,
esquece a melancólica infância,
numa aldeia parada,
dum fim de mundo anunciado,
debruça-se na vedação
dividindo o rio do prado,
pensa na vida.
Oscila entre ficar e partir,
aqui não aparece nada,
as mãos esquecem-se
de cortar o tecido,
da prova, da confecção.
Que belos que eram os fatos,
acabados e passados,
pendurados nas cruzetas.
As palavras baralham-se
no cérebro,
os argumentos atropelam-se,
vai hoje, já,
antes que se arrependa
toma o comboio internacional
até França.
Fará novamente vestidos
lindos,

para as madames dos subúrbios de Paris.

FALTA DE MOTIVAÇÃO


Dharminder Pabma

FALTA DE MOTIVAÇÃO

Hoje
não faço versos sobre políticos,
a política é uma coisa estranha,
cheia de teias, atalhos,
interesses, money, money,
meninas de caberet
muito jogo de cintura,
meninas de cabaret.
Há neles mais morte que vida,
mais atraso que avanço,
mais matéria estática
do que estrelas a brilhar.
Não sou afim dos carrões negros
que os transportam,
nem dos secretários, sub-secretários,
assessores e escrivães de assessores
sentados em lugares
propositadamente criados
depois das eleições.
Ora pois, são indiferentes
às nossas dores,
cumprimentam-nos de longe
para não sentir o nosso suor.
Deixem-nos em paz,
governem,
tudo é uma viagem

até à próxima paragem.

FLORISTA


Frederick Childe Hassam

FLORISTA  

A manhã amanheceu fria,
o nevoeiro
aconchega as ventanas
na cidade antiga.
A menina florista
acorda de madrugada
e leva na motoreta
ramos de rosas e lírios
até ao velho mercado.
Aconchega o cachecol,
antes de abancar
toma um café quente
e trinca um pastel de nata.
As encomendas do dia
estão em papel pardo,
enfiadas num prego enferrujado.
Tira da gaveta laços,
papéis de celofane colorida,
torce os dedos
entre as flores e a criatividade.
Sai um bouquet de aniversário,
vinte cravos vermelhos
e uma rosa amarela,
uma extravagância
do rapazinho magrinho
do quiosque do lado,

pela primeira vez enamorado.

OUTONO A CHEGAR

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OUTONO A CHEGAR  

A terra, enfim descansa,
o arado revolve-a, prepara-a
para a próxima sementeira.
Amareleceu a natureza,
as noites arrefecem,
o sensual Verão foi-se,
resta um ventozinho
soprando do mar,
no parque as crianças
aquecem as mãos nas castanhas
acabadas de assar.
O João já não é o mesmo,
sentado no banco do jardim
lê o jornal,
precisa de tempo
para assimilar o estado da nação,
com o Inverno ainda fechado
anseia a Primavera

que há-de chegar.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

JOAQUIM

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JOAQUIM

Fechado na sua casa pequena,
dedilhando a toda a hora a guitarra,
compondo
em cima da composição
de ontem,
esquece-se de comer,
esquece-se de viver,
esquece-se  de se interligar.
A sua vontade de criar
é  maior que a sua rua,
a sua cidade, o seu país.
Na sala acanhada
só ele cabe,
só cabe a guitarra,
despido de tudo, toca,
dó de dor  sol desvanecido.
Não lê jornais,
não tem televisão,
nem sequer se apercebe
estar em tempo de eleições.
Expõe-se na pauta
em notas entrelaçadas,
a melodia nasce,

esvai-se o homem.

O OUTONO

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O OUTONO 

O Outono aparece,
pé a pé,
sem dar nas vistas.
Fecho os olhos,
sinto só o nevoeiro,
a chuva a escorrer na vidraça.
No fim da rua cinzenta
grita a Rosalina preta:
«quentes e boas»
são de qualidade, são da Pradela.
Os turistas curiosos,
compram à dezena
e fotografam o carro
embrulhado em fuligem
e calor de brasa.
O vento anuncia tempestade,
teremos cheias
ou podemos dormir sossegados?
Esta deambulação
foi cortada
pelo meu estúpido vizinho,
cana rachada,

a cantar ópera.

TEMPOS IDOS

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TEMPOS IDOS

Outrora havia anjos,
arcanjos, violinos,
nos meus sonhos.
Não posso ignorar
que acreditei em paraísos,
indivíduos  criativos,
linguagens esclarecidas.
Hoje, tudo é pobre,
patético, cansado.
É exaustivo ouvir
discursos preparados
ao milímetro do minuto,
mentiras repetidamente ditas,
sem pestanejar,
sem remorsos,
sem aflições.
Traz-me a notícia boa,
não te suicides,
vem com mais alguns.

Marte é ao virar da esquina.