quarta-feira, 29 de outubro de 2014

AMANTES

Collado
AMANTES

Num fim de tarde agreste,
sentados no muro de pedra
que dividia a rua e o areal,
éramos só estátuas
num beijo apertado,
a iluminar a praia e o céu!

FESTA NA MINHA ALDEIA

Aurora Simões de Matos
FESTA NA MINHA ALDEIA

Era a hora do foguetório,
tudo a postos:
rebentam estrelas no céu,
os doridos pagadores de promessas,
ombros esgotados,
aguentam o andor
do Senhor dos Passos!
A aldeia em peso
ajoelha,
benze-se devotamente
pedindo uma graça!
Valha-nos o Santinho:
que não arda a mata,
o vinho encha a pipa,
o milho o espigueiro!
A roupa nova,
escondida na arca,
ganha brilho,
depois da missa
a conversa assenta arreiais
no adro da igreja,
bebe-se um café de saco
na tenda da tia Ermelinda!
Come-se avidamente
uma fatia de doce da Teixeira!
De soslaio,
pelo canto do olho,
mira-se a moçoila,
desenvolta,
cheirando a rosas frescas!
Com um bocado de sorte
e algum engenho,
acompanho-a até casa
e peço-lhe namoro!

FRENTE AO RIO

Pedro Lapa
FRENTE AO RIO    

Frente ao rio
feria-nos a neblina
que inundava as margens,
esfriava os muros!
O corpo sem fronteiras
navega,
no sítio exacto
em que o Douro
se junta ao Atlântico!
Encolhidos na esplanada
bebemos  um Sandman Vintage,
memorizámos
os barcos parados
que outrora
transportavam vinho!
Ouvíamos histórias
contadas noutras mesas,
comoventes,
meninos atiravam-se ao rio
por moedas!
Isto é ser pobre,
comer tripas,
couratos,
fissuras!
Esta bebedeira há-de passar,
não vou chorar!

ORÇAMENTO DE 2015

Collado
ORÇAMENTO DE 2015     
           
Sentam-se à mesa
com banqueiros indiciados,
dão-lhes dinheiro
directamente do nosso bolso
para resgatar os bancos nebulosos
que criaram,
sorriem felizes
ao anunciar algumas dezenas
de cantinas sociais,
querem-no pobres,
exaustivamente repetem
a necessidade de austeridade
por tempo indeterminado!
Ao longe, a nós ingénuos,
mostram um doce
agarrado a um pau electrificado:
se crescer  a dedução fiscal,
aliviam timidamente
a pesada mão dos impostos!
Somos condenados todos os dias
e mesmo assim aplaude-se
os líderes do nada,
mensageiros da desgraça,
e ainda por cima lhes pagámos,
generosamente!

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

ONTEM À NOITE

Victor da Silva Barros
ONTEM À NOITE  

Ontem à noite
na fronteira da Turquia
com a Síria Curda
o Estado  Islâmico
assassinou 100 homens,
72 mulheres,
100 crianças
entre rapazes, raparigas,
e bebés!
Deixou-os estatelados
no chão
de uma rua deserta,
pejada de escombros
de prédios bombardeados!
Fez-se silêncio,
silêncio duro,
cortados os pulsos,
as carótidas!
De súbito,
as imagens passam na Net,
bandeiras negras
deste negro movimento!
Ah Ernesto Guevara,
Passionara,
até Mao Tsé Tung,
bonecos dóceis
diante desta barbárie!
Divulgam-se mitos,
a juventude sem direcção,
segue-os e acredita!
São crimes,
sejam em nome de Deus
ou Alá,
sujam as amendoeiras em flor,
os corpos
dos que morreram em vão!

NÓS

J. Valcárcel
NÓS  

Conhecemo-nos
numa festa de amigos comuns,
primeiro olhámo-nos
de relance,
depois atámos as mãos
deslizando na sala
ao som novo dos Beatles,
o olhar inquieto
quis ali o mundo inteiro!
Depois os lábios
eram dois bagos
de uva moscatel,
ah um súbito desejo de beijar!
Ao fim de um ano
conhecíamos todas as manhas,
todas as marcas,
todos os gostos
e desgostos
de cada um!
Desfazíamos o nevoeiro
do cais do Porto Velho
com a imensa vontade
que fosse para sempre
a chispa que nos aproximou!

MARGENS DO SENA

VIFER
MARGENS DO SENA

Sentado num banco de madeira,
fotografava os Bateax Mouche
transportando
turistas do mundo inteiro!
Lia um livro,
comprado
num alfarrabista barbudo!
Tomava uma taça de champanhe
rindo para a vida,
de bem com tudo e com nada!
É Paris!
O Louvre,
a Torre Eiffel,
o Bairro Latino,
os quiosques,
as pontes do Sena,
as ostras com limão,
o vinho branco gelado,
a baguete crocante,
a salada de chicória!
O Centro Pompidou,
os artitas de rua
pintando no Sacré Coeur!
A multidão correndo,
as lojas caras
Louis Vuitton,
Versace,
Christian Dior,
o túnel da Alma,
a exposição de Picasso,
os Marroquinos,
os jardins,
a luz,
as tábuas repletas de queijos,
o croissant amanteigado,
os velhos sonhos
maquiando a alma,
a corista reformada
do Moulin Rouge,
a Catedral de Notre Dame!
A liberdade,
a Marseillesa,
as hordes de povo
derrubando prisões!

CRIANÇAS NUM PAÍS DE GUERRA

Edgar Invoker
CRIANÇAS NUM PAÍS DE GUERRA

Faces circunspectas,
olhos parados,
pernas secas,
ventres inchados,
uma lágrima furtiva
corre devagar
até parar no pão seco,
o que conseguiram
no meio do caos!
Uma tristeza funda,
indiferença
diante dos mortos
amontoados nas vielas,
tapam os ouvidos,
conseguindo captar
cânticos sacros!
Registarão a selvajaria,
usá-la-ão
sem precisão
contra quem os encurralou!

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

RETRATO

Victor Silva Barros
RETRATO  

O tacão é alto,
fininho,
posso cair a qualquer instante!
Diante do meu nariz,
vejo através da vidraça
uma pequena rechonchuda
que ri da desgraça
das minhas pernas lascadas!
O meu comparsa
que me acompanha
tanto lhe faz
o meu estatelanço no chão!
Ignorante
de gramática e sentimentos,
teima em escrever sem H
o há muitas flores
em certos olhares!
Já é um fantasma para mim,
nem o sinto,
no céu há apenas as nuvens
ameaçando chuva!

TERRA MORTA

Victor da Silva Barros
TERRA MORTA

Tomaram-nos!
Queimaram-nos!
Somos cinza
e não brotámos!
Putrefactos,
desistimos!
Somos nós,
nós gente,
queremos mais uma vez
renascer!
Uma folha verde
e outra
vem lá do fundo
querendo viver!
Somos o que restou
de um país com sonhos,
desconfiados,
tremelicantes,
queremos voltar a ser humanos!

ESCRITA

Collado
ESCRITA  

Peguei na caneta
antiga,
tentei rabiscar
o nome
de quem é por definição
solidário!
A caneta enguiçou,
a tinta secou,
nem um traço ficou
depois do bico estraçalhado!

PENSANDO

Victor Silva Barros
PENSANDO

Cerrei os olhos com força
e pensei:
um país
por ter muitos doutores,
engenheiros,
arquitectos,
professores,
políticos,
padres,
ladrões,
não é mais profícuo
nem cria mais riquezas!

NOSSOS DIAS

Victor Silva Barros
NOSSOS DIAS

Na televisão
passa o Alcorão das bombas,
em nome do Islão
cortam-se cabeças,
faz-se propaganda fanática
a mais decapitações!
Mata-se,
viola-se para procriação,
são precisos mais seguidores!
Arrasam-se aldeias,
queimam-se campos aráveis,
não sobra nada, nada!
Ameaçam
com outras guerras santas,
brandem-se reinos de Granada!
Que subterrâneos pérfidos
lhes enchem os bolsos
para comprar armas?
O Ocidente tão terno...
no pavor de perder o petróleo,
bate palmas à Primavera Árabe,
efectivamente só lhes interessa o fóssil!
Em nome da matéria prima
tanto abraçam ditadores,
como libertadores!
Mortes? Destruição?
Desde que tenham o seu pão garantido,
que lhes importa o que se passa
a tantos quilómetros
de distância?
Dormem sempre descansados!

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

MÃOS

António Carmo
MÃOS

Pequenas como gadanhas
de jardim,
revolvem a terra,
plantam árvores de fruto,
podam,
colhem!
Atarefam-se
preparando a ceia,
arqueiam-se
segurando as tuas!
Mãos de gente
segurando a vida!
Mãos que partilham,
mãos que repartem,
mãos gastas
de dar e não receber nada!