quinta-feira, 29 de maio de 2014

PROPRIEDADE

José González Collado
PROPRIEDADE

Com mil metros quadrados
de terra  escura
e um muro de arame à volta,
uma mão cheia de alfaias
e um pomar de cerejeiras,
umas quantas galinhas
e um par de coelhos,
eu seria proprietária do mundo!

ROTURA

Collado
ROTURA

O ano passado
no fim de cada dia
sentava-me ao teu colo
a contar as estrelas,
depois encontrei-as em ti,
até que sem saber como,
no meu peito
já não cabes tu,
nem as estrelas
que contávamos juntos!

REFLEXÃO

Collado
REFLEXÃO

Eis a igreja que procurámos,
linda,
estilo gótico flamejante,
com pináculos a rasgar o céu!
Onde está Deus,
Cristo milagroso,
Maria mãe
que o envolveu
na descida da cruz?
Vimo-los atrás do altar-mor
repartindo pão e vinho,
pouco se importando
com os meninos
violados na  sacristia!

sexta-feira, 23 de maio de 2014

FIM DE TARDE

Eduardo Roseira
FIM DE TARDE

A coberto da serenidade
que se põe
cada fim de tarde,
abro o caderno secreto,
branco, imaculado,
onde reinvento poemas!
Dou importância a tudo,
ao velho que passa
na calçada,
apressado,
às crianças que gritam
por um gelado,
à vizinha atarefada
que estende a roupa
 na varanda,
à tua boca faminta
que espera os meus beijos
extasiados!

ATÉ QUANDO

VITOR ZAPA
ATÉ QUANDO

Ainda permitimos
que nos suguem
com palavras escolhidas,
ditas hoje,
desditas amanhã!
Fabricados os argumentos
por senhores bem alinhados,
agarrados à cadeira do poder,
os pategos votam ...
votam neles!
Um dia, quem sabe,
havemos de destitui-los,
acabar com o teatro de marionetas
criado para nos impressionar!
Diremos aos nossos filhos e netos,
não prestam,
por nós eleitos,
estão a destruir-nos!
Toquem na terra,
comandem máquinas,
naveguem em cargueiros,
sejam timoneiros
dos mares bravios
do nosso descontentamento!
Façam leis ajustadas
às necessidades do dia a dia,
evitem tempestades,
não nos mostrem falsos deuses,
nem fariseus mortos!
Sejam arautos de esperança,
deixem-nos viver!

PEQUENO ALMOÇO

José González Collado
PEQUENO ALMOÇO

A bandeja está cheia
de compotas vibrantes :
morango e maçã,
ananás e pêra,
abóbora e melancia,
fatias de meloa brava,
pãezinhos de mel e nozes!
O café é negro,
odoroso,
o leite fresco,
imaculado!
Acordamos tarde
e beliscámos o banquete
que nos foi dado!
Bom dia,
medi-te a altura,
a cor dos do olhos,
avelãs do monte,
as mãos distributivas,
a querer mais que tudo
a vida!
Cada manhã dás-me um motivo
para partir a fruta
repartindo-a contigo!

quarta-feira, 14 de maio de 2014

MANIFESTO

Carlos Antunes
MANIFESTO

É urgente votar,
é urgente mostrar
quem somos!
É urgente declarar,
é urgente banir,
o que não queremos!
É urgente gritar,
é urgente afastar
o circo montado para nós
que detestámos!
É urgente manifestar
mais deste governo
não aguentámos!
Solidariedade,
fraternidade,
liberdade,
é o que sonhámos,
para este país em sofrimento,
nossa casa,
nossa sepultura,
nosso porto de abrigo!

CANSAÇO

Joaquim Durão
CANSAÇO

Sou deserto
neste cansaço
que não sei de onde vem!
Ei meninos
que passam a correr
na rua suja
do Porto velho,
tragam-me um cimbalino
com um cheirinho da bagaceira
da Adega do Olho!
Ei vizinha tão velha como eu,
sintonize a rádio Placard
que desajeitadamente
transmite discos pedidos,
antigos, falidos!
Ei senhor turista,
obrigada,
agradecidos,
por gastar 79 Euros,
cada dia,
nesta cidade adormecida!
Ah, a janela esfarrapada
ainda deixa entrar o luar,
rostos vivos,
o ribombar dos trampolineiros
a passar!

NOSSO TEMPO

Sílvia Marieta
NOSSO TEMPO

Difícil é sobreviver
com o frio glacial
corroendo o coração,
as tripas,
o cérebro!
Tudo nos ataca:
os mercados financeiros
e sua ganância,
os governantes sem ideias
apenas acautelando o seu,
o amor que derrapa,
o vizinho do lado
tida a noite cantando ópera!
Salvar-nos-à o sonho
movediço,
no prato de lentilhas
parcas,
do almoço!

PENSAMENTO

Carlos Dugos
PENSAMENTO

Estendida na cama,
ao fim da tarde,
espera que a morte
inundando a sua cabeça,
não a impeça
de realizar a vida!

sexta-feira, 9 de maio de 2014

VELHOS

J. Eliseu (filho)
VELHOS

Arrumados,
em cantos,
para não estorvar,
como peças de roupa,
usada,
à espera de ser escolhida,
empacotada,
expedida,
para uma instituição qualquer!
Perdidos nas memórias,
ninguém os ouve
e se ouvem riem-se
de supostos delírios
ou mesmo de sentimentos
sentidos!
Já foram vida,
felicidade,
são velhos,
titubeantes,
ninguém lhes dá nada,
nem o ombro,
nem a acção
ou um regresso
ao passado!

FERTILIDADE

J. Eliseu (filho)
FERTILIDADE

Hoje sou eu,
inteira, a inundar as ribeiras,
levando o húmus
mais além!
Sigo a rota
das de água,
pedindo ao vento ajuda,
adubo as terras
com as folhas caídas!
Espero de joelhos
que a semente cresça,
levanto-me com os pássaros
matinais,
chilreio em todos os beirais,
anunciando a Primavera!

ROSA

Isolino Vaz
ROSA

Feita a quarta classe
com pouca distinção,
nunca se lhe conheceu o condão
para as contas,
colocou-lhe a mãe
um avental lavado,
penteou-lhe o cabelo negro,
deu-lhe uma trouxa
com trapos mal passados
e fizeram-se a caminho
da vila!
Servir era o destino destinado,
numa terra onde nada havia
a não ser uma lavoura primária!
Chegaram de pernas cansadas
e pó colado às caras!
A casa da patroa era grande,
a Rosa sorriu,
tudo limpo,
objectos desusados
espalhavam-se nos móveis finos!
E os meninos,
os meninos, que lindos,
tão loirinhos!
Rosa levanta-te,
Rosa põe a mesa,
Rosa prepara o pequeno-almoço,
acompanha os meninos à escola,
brinca com a bebé,
olha a mala do patrão ,
suporta a bofetada do Ruizinho!
Que vontade de chorar,
tanto cansaço,
não tenho espaço
e a liberdade não estava
no contrato!
Olho de cima do terraço,
a aldeia por detrás da colina,
juro:
ainda um dia hei-de fugir!

sexta-feira, 2 de maio de 2014

FIM

Victória Rodrigo
FIM

Tão fria que és
gelas tudo à tua volta
com a tua figura esfíngica
perna longa
e salto alto!
Sentada na cadeira
do café da moda,
debicas com fastio,
um bolinho de gengibre!
Estás ausente,
numa conversa
tornada fluente,
o olhar disperso,
a mão
que não pousa na minha!
Eu sou o gebo
que te sustenta
acertando o caminho errado
traçado por ti diariamente!
Olhamo-nos demoradamente,
não nos vemos,
sorrimos até
e não sabemos onde estámos
ou para onde vamos!
Falámos línguas distintas
e tomámos chá de tédio
no Domingo
ao fim da tarde!
Filhos de mau encontro,
nada fazemos juntos,
esperámos
que a corda bamba
se desfaça
e cada um tome o seu rumo!