quinta-feira, 28 de maio de 2015

OFERTA

Silvana Violante

OFERTA  

Confio
neste dia diferente,
entrei na chocolataria,
escolhi com os olhos
a caixa mais doce
de chocolate com nozes.
Sofri até à noite,
momento exacto
em que  a coloquei
em cima
da tua secretária.
Deste de caras
com a caixa chique,
desembrulhaste
demoradamente
um bombom azul.
Alguma razão
terás
para nem sequer
me agradeceres
a despretenciosa
oferta.

UM ABRAÇO NO MEIO DA RUA

Emanuel Teixeira

UM ABRAÇO NO MEIO DA RUA

Abraçamo-nos,
é  indelevelmente boa
a sensação de ter-te
abandonada a mim.
Não gosto
que algum passante
diga:
é piegas abraçar assim
no meio da rua.
Não pertenço à rua
sentindo
o teu coração a bater
descompassado.
Quero só
que sintas
o cavalo alado
que é o meu
batendo por ti!

PARTIR

NEIRO

PARTIR

É o fim.
Não há mantas que cubram,
o frio entranha-se,
fica.
O coração bate fraco,
por todo o lado
há alguém que parte.
Aproveito,
escrevo um S M S:
também vou.
Espero um pouco,
penso:
não há espaço
para adiar a resolução,
vou, com uma nação na mão.

PENSAMENTO

Porfírio Alves Pires

PENSAMENTO  

Chega o dia
em que é preciso largar
a leveza de pensar
que a vida é fácil.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

VISITA

Picasso

VISITA  

Apareceste,
melhoraste o meu dia,
tua lufada fresca
de saia rodada,
o riso dobrado,
o passo apressado,
correndo
para me desejar boa jornada,
Outra coisa importante,
trazias debaixo do braço,
resguardado,
como se fosse um tesouro
antigo,
um livro de poesia
de Eugénio de Andrade.
A oferta
era, sem dúvida, apetecida.
Confesso,
fiquei comovido,
dei-te como paga
o que estava ali à mão,
uma mão cheia de rosas encarnadas.

POESIA SEMPRE

Collado

POESIA SEMPRE  

Basta um poema
que alguém escreva
num dia claro
para valer a pena
ter presente
e ter passado.

CONSTATAÇÃO

Collado

CONSTATAÇÃO  

A pele sedosa
quebra com o seu suor
o imaculado branco
do lençol.
A janela escancarada
traz até aqui
o calor abafado,
o cheiro a trovoada,
a terra seca.
Paira no ar
um odor intenso
a núpcias, a laranjeiras
em flor.
As lágrimas
substituem as palavras
quando se é
o que não se queria ser.
Defronte
correm três riachos,
não pensam,
mas sabem de cor
o seu destino,
abraçar-se ao mar.

PROCURANDO

Eduardo Viana

PROCURANDO  

No muro escreve-se:
viva a liberdade.
Quebram-se as amarras,
soltam-se as vozes
do fundo do esquecimento.
Corre-se apressado
até ao largo
onde se grita:
queremos ter mão
nos nossos destinos.
O polícia espreita,
lentamente,
com gestos precisos,
retira do cinto
cassetete,
e, bate, bate,
descarregando a sua própria
raiva.
Acomoda-se
nos nossos olhos
a fúria da razão.
O dia declina,
a angústia acende,
a utopia
fica para amanhã. 

AMOR

Eduardo Viana

AMOR  

Os corpos fremem,
indomáveis e audazes,
cavalgam por entre as urzes,
percorrem o caminho do desejo.
Abrem as narinas,
sentem
o amor acontecido.
Quase leves,
quase felizes,
bebem num gin
o último frémito do dia.

terça-feira, 12 de maio de 2015

NAMORADOS

Almada Negreiros

NAMORADOS

Protegidos
pela beleza de uma laranjeira
em flor,
flores usadas
para coroar deusas,
a menina e o rapaz
beijaram-se
pela primeira vez.
Nem o calor primaveril
queima a tez dos amados,
nem a rega do jardim
os molhou,
algo os enlaçou,
o momento ficou
retido nas suas memórias.

RITUAL DA LENA



Dunieski Garcia
RITUAL DA LENA  

Levanta-se de manhã,
abre os olhos
a ver se ainda está viva,
verificado o facto,
salta como o lince,
da cama,
e prepara o pequeno almoço.
Pão quente
com cereais  variados,
salpicado de azeite e alho,
gomos de uma laranja
sumarenta
e um café negro, escaldante!
Afasta a cortina
sol ou chuva?
o dia  ferve
num calor fora de época,
abre-se para a jornada,
e deseja  a  si própria
um bom dia.

O VELHO LAR



José Gonzalez Collado
O VELHO LAR

Volto todos os dias
à velha casa de pedra,
não tenho outro remédio
é a única que é minha,
Entre o portão de ferro
enferrujado
e a cozinha,
há uma escada esbotonada
que subo
sem qualquer pressa.
Volto
e peso religiosamente
o arroz carolino
que fritarei no refogado
de azeite, alho e cebola.
Abro o frigorífico,
apanho um ovo,
escalfado,
naquele arroz frito,
fará a refeição da noite.
Volto a abrir
o diário das contas,
o ordenado é tão escasso,
a luz, a água,
o vidro partido pela ventania,
a pia entupida,
a missa do sétimo dia,
o IMI para a autarquia,
o passe mensal,
o café e o jornal diário.
Tenho a plena consciência,
só trabalho
para sobreviver.

ALINHAMENTO

José Gonzalez Collado

ALINHAMENTO

Coreto.
Páscoa.
Aleluia.
Sentidos beijos
sabendo
a limão e mel.
Sonolência
impertinente,
foguetório tardio.
Desaperta-se
o vestido.
O quarto
aquecido
guarda a nudez
tímida.
Roda-se
no velho soalho,
falta o par,
falta o par.
Cheira a amoras
nas tardias horas.
Brilha a teia
no orvalho
Onde está o parceiro?

Onde está o guerreiro?

PERGUNTA

José Gonzalez Collado

PERGUNTA

Se o dia foi tão brilhante,
tu sorriste
a cada instante
porquê chorar
ao fim da tarde?

quarta-feira, 6 de maio de 2015

AMIGO


Picasso

AMIGO

Escrevo
no choupo
junto do rio:
um amigo
é um porto seguro.
De tão corriqueiro
o preceito,
o orvalho apagou-o.
Alguém
muito sagaz,
deixou um recado,
gravado
com pedra de xisto:
não estejas tão certa.

PARA LÁ DA MORTE

Picasso

PARA LÁ DA MORTE 

Morri,
pus-me na fila
imensa,
esperando
a entrada no inferno
ou paraíso.
As escadas que percorríamos
eram estreitinhas,
poidinhas,
ladeadas por anjos e demónios,
levando a deus e ao diabo
os recados
dos novos falecidos.
Do outro
havia uns cães treinados
para farejar os pecados
antes da última triagem.
Deixei-me ficar parado
numa sonolência esquisita,
sem que eu imaginasse
a balança parou
igualmente entre deus e o diabo.
Deus envelhecido,
mãos tremelicantes,
desceu numa nuvem
e disse-me:
dou-te o beneficio da dúvida.
Prenderam-me umas asas
amarrotadas,
mandaram-me de volta:
age,

desequilibra a balança.

FACTO

Picasso

FACTO  

Chegaste pela noitinha
chuvosa, silenciosa,
pousaste a roupa
na cadeira retro,
dobraste-te em arco,
sorveste-me
como se eu fosse
uma tarte de maçã

aromatizada com canela.

ROMÃ

Collado

ROMà     

Abriu-se a romã
ao sol dourado
de um domingo de Verão.
O vento soprava devagarzinho,
levou os bagos sangue
como se fossem catanas de guerra,

pousando-os no teu ventre ardente.

INSTANTE

Picasso

INSTANTE  

Abraçar-te
só,
enroscar-me na manta lilás,
sonhar olhando as nuvens
de algodão branco,
voar
na asa da águia azul
passante,
alisar a voz,
cantar canções de Abril,
arquear em luz,
iluminar o sítio,
escrever um poema,
fazer com que o dia

valha a pena!