terça-feira, 29 de setembro de 2015

TODOS HUMANOS


Anita Malfatti
TODOS HUMANOS  

Preciso de tudo para viver:
do café amargo
tomado de manhã,
das manchetes dos jornais
com notícias escaldantes,
da caminhada pela vida
da cidade,
do momento de pensar
poesia.
Onde me dispo,
onde vocifero,
onde arreganho a dentuça
que por ora é minha.
O meu coração
ainda sente:
no mundo cabemos todos.
As florestas têm tantas árvores,
os rios levam tanta água,
as terras produzem todos os anos.
Somos de cor diferente,
temos diferentes credos,
mas alimentamo-nos,
amámos,

sofremos igualmente.

OS DESILUDIDOS DOS POLÍTICOS


Cézanne
OS DESILUDIDOS DOS POLÍTICOS

Os desiludidos da política
estão tão calados que dá dó,
fechados, angustiados,
não dizem sim, não dizem não,
Embrulham-se nesta indefinição
pecaminosa
permitindo o jogo do empurra,
sempre que se tomam decisões.
Da minha casa não os ouço,
da minha casa não os vejo,
os da camarilha
vivem desta mornice
gozando com a situação.
Na hora da votação,
na hora da contagem dos votos,
não inclinam a balança
não forçam qualquer resolução.
Os mais afoitos vão na frente
da transformação
eles ficam toldados pelo bagaço
amargo
tomado à hora da refeição.
Como todos, têm coração,
sentimentos, desejos,
aspirações, ilusões,
mas deixam-se ultrapassar
por alguns idiotas
que pretendem apenas da nação:
a bolsa cheia.
Perdem o viço,
a justeza das coisas da vida,
espero que no fim da jornada
dancem pelo menos
um Kizomba  surreal.

a festejar qualquer vitória.

SAUDADES


Marcos Andruchack
SAUDADES  

Tenho saudades
de quando éramos namorados,
nada era ridículo,
nem os beijos apaixonados
nos velhos jardins da cidade,
o dinheiro contado
para o café e bolo,
o passeio dos tristes
até à Foz
começando ao lado do rio,
ora de eléctrico, ora a pé
consoante as posses,
as cartas extensas,
autênticos estados de alma.
Não havia telemóvel,
internet,
era preciso saber escrever.
Meninos e adultos 
simultaneamente confusos
vendo o sol caindo devagar
no extenso mar à nossa frente.
O frio não enregelava,
as flores não se ofereciam

estavam dentro de nós.

UM DIA DE VERÃO

Henri Matisse

UM DIA DE VERÃO    

Soube-me pela vida
o gelado de limão
comido depois da refeição
pesada,
o assado típico
de um domingo português.
O azar foi ter ficado com azia
a estragar-me o dia.
Uma bolacha de mel e noz,
talvez equilibre o azedume,
molhada no café
doce e forte.
A combinação dos sabores
é uma ciência exacta,
desperta o palato
e explode na boca
até ao último bocado.
Apesar da má disposição
que bom que é comer

num dia iluminado de Verão.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

DESABAFO


Jae Hoon Lee
DESABAFO  

Suportámos, mais uma vez,
este tempo de inércia absoluta,
açaimadas, calados,
fazemos do medo
o guião que nos leva.
Resultaram inúteis os sonhos,
as promessas, as preces,
as bocas aloquetadas.
Meus companheiros de viagem,
os olhos deixaram de chorar,
o trabalho é maquinal,
não se corre para o jardim,
cada fim de tarde iluminado,
discutindo o futuro,
bebendo uma cerveja gelada.
Pasmados, enredados.
numa espera angustiante,
não importa a luta
quando a alma se acorrenta
à barbárie de concordarmos
que os números

valem mais que as pessoas.

DESPREZO



Johannes Vermeer

DESPREZO    

Como sempre  passas ligeira
em cada manhã do outono estival,
rabo de cavalo abanando
ao redor da tua cabeça.
Conta-se pelos dedos
as vezes que me cumprimentaste.
Hoje sinto desprezo
por plantar de noite alfazema
para ta oferecer de dia
em buquês perfumados.
Nada intercede por mim,
nada sobra de ti
nada afugenta esta solidão.
As semanas passam,
não te dás conta do meu desespero.
Perdes a importância,
a partir de hoje ignoro-te.
O tempo agora
sou eu a construí-lo.

CRISTINA E A NET



Max Beckmann
CRISTINA E A NET

Sim, é frágil.
mais sensível
que as violetas
crescendo no seu jardim.
Não conseguindo
superar as suas dores,
expõe-se nas redes sociais.
Por cada exposição,
sem rede,
consegue dezenas de likes.
Gostaram de quê?
Dela, da sua personalidade,
da sua escrita ligeira
ou do que a atormenta?
Todos estes gestos automáticos,
desprovidos de sentimentos
não cabem nela.
Pacata, tímida,
para o que lhe havia de dar,
circular num mundo virtual.

CATARINA

Picasso

CATARINA    

Não é acomodada,
não é mais uma
presa ao nada.
Gosta do presente,
quer vivê-lo,
construindo mesmo
castelos de esperança.
O mundo é grande
e ainda há gente boa.
Encara a realidade,
não se vira ao contrário,
aponta o seu dedo mendinho
aos narizes grandes do passado.
Não se afasta,
não desiste
quando da janela vê

a miséria que persiste.

JOVENS E LINDAS

Karel Appel

JOVENS E LINDAS    

No meio da pista
as moças dançam
lindas, em flor,
a pele sedosa,
a alma em ebulição.
A música enche a sala,
os olhos riem,
rodopia-se,
pede-se um par,
uma carícia,
Tão jovens, tão fogosas,
querendo encontrar  ali
um companheiro, quiçá,
No soalho gasto
são pegadas pelo braço,
naquele domingo pacífico
e ficam tão derretidas
como as fadas escolhidas.
para acudir aos meninos

no primeiro dia de aulas.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

QUOTIDIANO

Adrian Borda

QUOTIDIANO

A Maria estava zonza
sentada na cadeira do metro
que a levaria à Trindade.
Dormiu mal,
via a paisagem rodando
numa dança de salão,
ora com par, ora não.
Mas que grande confusão
no corredor,
o rapaz traquinas
puxava o rabo de cavalo
da criada do Comendador.
Ninguém calava
a sua gargalhada estridente.
O senhor Ricardo
dono do tasco
agachado na rua da Madeira
fazia cara feia à sua dor de dentes.
O rapaz barbudo
que trabalhava no quiosque
em frente a S. Bento
despedia-se sofregamente
da sua recente namorada.
A carruagem apinhada
de meninas apressadas
para abrir as lojas
de lembranças para turistas.
A Maria só olhava
não dizia nada,
queria saltar pela janela
e dançar nua
diante daquela gente toda
agarrada à lapela
de qualquer poeta inconsequente.

CONFISSÃO


Françoise Nielly
CONFISSÃO

Sou teu e depois?
Ninguém compreende
como um pedreiro, grosseiro,
se relacionou com a delicada
bailarina.
Pedes água natural,
eu bebo uma cervejinha,
trinco ruidosamente os amendoins
torrados.
Tu sorris,
não te agastas
com os meus gestos broncos.
Nunca tive para mim
um sorriso tão bonito,
a tua dança em pontas lançada
é o colo que me faltou.
Derreto-me a olhar-te
enquanto as águas do rio
se lançam velozmente para o mar.
Foi-se as ordens do patrão,
o pouco salário ganho,
a falsidade do mundo,
ganhei o dia contigo.

VOZ JÁ CANSADA

Gray Caldas

VOZ JÁ CANSADA

Tenho apenas uma voz,
não me exponho
nas redes sociais,
como convencer
mais que um
que o país está um caos?
Fileiras de escravos
sem questionar
trabalham metodicamente,
todos os dias,
às vezes, sábados
e domingos
por um punhado triste
de moedas.
Mesmo assim nada é seguro,
os contractos precários
podem terminar
num estalar de dedos…
É confrangedor a escolha
constante:
um bife ou a conta da água.
Se viver é tão doloroso
porque não exigir com os dentes,
com os punhos, com  gritos,
um país novo?

UM OUTONO DIFERENTE


Cavalcanti
UM OUTONO DIFERENTE

Quando a Rita
passeava pela cidade
num jardim junto da marginal,
o Outono parou,
para não a incomodar,
apesar da beleza
das folhas caídas no chão.
Sabe bem um café quente
na esplanada mal iluminada,
uma luz bruxeleante
atravessa a mesa
e fixa-se no papel
onde escreve um poema.
Tem que se apressar
antes que mude a hora
e o Outono se esvaia
no por do sol do tempo.

A DEMOCRACIA QUE TEMOS


Artur Barrio
A DEMOCRACIA QUE TEMOS

A rua deserta.
Apenas um bêbado
deitado no meio do caminho.
Um bêbado meio adormecido
na noite fria de Outono,
tresandando a álcool e a solidão
Passou uma vendedeira
a caminho da Ribeira,
ourada e sorridente,
jamais esquecerá a ligeireza
com que a polícia
o varreu da rua,
livrando-se do empecilha,
acantonado agora
entre muros  do albergue
da rua da Liberdade.

ACTOS DE FÉ

AC

ACTOS DE FÉ

Os peregrinos
entram no imenso adro
do santuário,
compram velas do seu tamanho
queimando-as a seguir,
libertando no fogo os pecados.
De joelhos jorrados
no pavimento enrugado
dão voltas e mais voltas
à capela das Aparições.
em dolorida oração,
passando pela mão o rosário.
Há quem ofereça rosas
depositando-as aos pés da Virgem,
outros retiram os ouros
dos seus corpos suados
doando-os aos abades do santuário,
pagando promessas atrasadas.
Os sinos tocam
anunciando a próxima missa,
a senhora exposta
não chora, não grita,
perante a dor e a injustiça
dos castigados.
Esplendorosa
na sua tez branca
de estátua calcária,
impávida, serena,
espera a hora do adeus
na procissão das velas,
recolher ao altar
após a imensa manifestação
de uma fé
que se não salva, embala
até à próxima chibatada.