sábado, 28 de dezembro de 2019

O FUTURO

Estrela Rua
O FUTURO

O futuro
não tem a ver
com o vazio deste país.

ODE À MÃE

CARMEN SEVILLANO ESTREMERA

ODE À MÃE

Gosto da maneira
como a minha mãe me olhava,
passava – me a ferro
não deixando dobrinhas
ou engelhas.
Eu seria a sua obra perfeita,
eu cheia de imperfeições
e defeitos.
O seu olhar penetrante
virava – me a alma do avesso,

mãe como era bom.

Natal

Collado
NATAL

Quero começar pelas rabanadas de mel
depois as filhoses , o bolo – rei.
Um punhado de frutos secos
e um cálice de ruby
cheirando a socalcos do Douro.
Uma pausa demorada,
a seguir recomeço com a caldeirada
de bacalhau e couve portuguesa,
umas perninhas de polvo
regadas com molho verde,
pão de milho e um palhete de estalo.
Os outros, os demais convivas,
não me acompanham,
degustam agora a doçaria .
O champanhe rebenta no fim
borbulhando em copos próprios
arranhando a garganta,
dando boa disposição.
O gato ressona
junto à quentura da lareira.
A criançada alterada
corre pela sala,
só pensam no minuto
da abertura das prendas .
O avô pede um chazinho
para atrasar.
Faz- se um silêncio,
olham – se de frente.

Bom Natal.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

POEMA

Collado
POEMA 1

Todas as alterações de crescimento
nascem de húmus apodrecido
ajudando a vida a rebentar
no flanco da Primavera.


POEMA 2

A tesoura de poda
amassada,
é minha por herança,
corta o seco
e faz frutificar as hastes novas
em açafates de  cor e cheiro.


POEMA 3

As asas da pomba
planam sobre a copa
das árvores atentas,
poiso e descanso
depois da labuta
colhendo os víveres
da sobrevivência.


POEMA 4

Na escrevaninha
riscada com palavras
e manchas de tinta
vê-se o tempo que gasto
a criar poemas.



POEMA 5

O livro aberto
planície de opções
onde cabe o meu anjo
da guarda.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

JOGAR COM PALAVRAS

Dina de Souza

JOGAR COM PALAVRAS

1
As famílias têm algo de perverso
tanto distribuem confeitos coloridos
como espetam o gancho dourado da avó
nas falanges de cada dedo dos próximos,
sem dó nem piedade.

2
Rezava  desde miúda à Santa Rita,
um costume que me ficou,
de tanto o ouvir à avó Olinda,
encontrava em Deus
e nas figuras celestiais
todo o conforto
que os humanos me negavam.

3
A minha mãe em dias festivos,
acendia o forno a lenha,
amassava e cozia regueifa doce
com que nos lambuzávamos
derretida sobre ela a manteiga.
As mãos no fim da tarde, doridas,
ainda colhiam glicínias
para encher as jarras
que enfeitavam os nossos lanches
cheios de risos e brincadeiras.
Lindos esses tempos
por serem felizes
longe das dores e dos silêncios.

4
As amigas que com ela tomavam chá
de lúcia lima, todas as sextas feiras,
tornavam à vida diária
com a íris colorida de azul,
desenvolviam olhares arriscados
donde nasceram casos
com homens confundindo a vida
com olhos azuis.

5
Quem conhece de facto as raparigas?
Fazem tudo para atrair o macho
e depois cansam-se.

6
Fala comigo
nem que seja
para nada dizer.
Depois do Inverno
vem a Primavera,
florescem
as ameixieiras
para fazermos sandálias
debruadas a luar.

7
Como se chama
quem cegou o coração
e lhe deixou uns óculos
escuros, pendurados?

8
As pérolas
caem no veludo negro
depois de usadas

são de um branco sujo.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

ESTADO DE ALMA

Dunieski Garcia

ESTADO DE ALMA

O cão sarnento
late à porta,
a menina de chapéu vermelho
deita-lhe a língua de fora,
um casal de canários
chilreia baixinho
na gaiola azul encriptada,
olhando a tempestade
no fundo do horizonte
encardido.
Os corpos dos transeuntes
escurecem a calçada,
presos à alma
são uma ventania
soprando nas brasas mortiças
do carvão assando castanhas.
O café quente queima as chávenas
e limpa todas os restos
de soluços presos na laringe,
içam-se as bandeiras nos mastros
abandonados,
das ruas que são as mesmas
pejadas de estranhas línguas.

Falando

Victor Silva Barros

Falando 1

Um trovão estridente
encheu a casa de sonoridade,
veio de noite
fez-me companhia
até à hora de ir para a cama


Falando 2

A casa é o centro
do que sou,
é a antepara
do calor emanando o príncipio,
o vulcão explodindo
afastando a multidão.


Falando 3

A poesia é a eternidade
descendo com a alma,
é como plantar uma árvore,
fazer um filho,
escrever a cinzel
o nosso nome
na transumância
de cada cordeiro pascal.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

CARTAS


Marco Santos
CARTAS 

Guardadas numa arca,
pirosas, coloridas,
laços, corações,
sol, mar e lua.
Muitas juras de amor,
tanto bem-querer,
com dias mágicos
em que chegávamos nós
e as ondas a bater na areia.
Celebravam datas,
dias de semana especiais,
eram repositório de desejos
e terminavam com beijos.
Transformaram-se
em memórias,
embrulhadas em pó,
com cruzamentos
e rectas fechadas,
com gente que já partiu
e outra que ainda resiste.
Letras desbotadas
de leitura difícil,
mesmo assim
não as quis partilhar.
Fiz  obras em casa, queimei-as.

AU REVOIR

Mary Carmen Calviño
AU REVOIR 

Admiro a tua calma gélida,
a tua maquilhagem marcada,
o rastreio que fazes das emoções,
o navio que deixas partir,
levando-me a mim que te amo.
Não tens coração,
nuvens de rugas sulcam-te o rosto,
a rotina suga-te a vida que é tua.
Juntos planeámos sonhos,
sair para um país que nos valorizasse.
Tantos anos de estudo,
tanta luta para vencer obstáculos
e só barreiras  é o que nos dão.
Nunca fizémos as malas,
de mim ficou uma fotografia,
no teu quarto, um adeus,
quem sabe uma lágrima.

IN MEMORIA


IN MEMORIA
de FIRMINO MOREIRA

Biologicamente alto,
aprumado,
acordado para o mundo
cofiando o vaidoso bigode,
sem medo da exposição
aventurou-se nos mistérios
da pintura, da poesia.
Pertencia onde estava gente,
de lenço colorido ao pescoço
bajulando as damas à antiga
com vénias e ósculos
nas bochechas.
Não iremos mais pelo Norte fora
perdidos nos matagais e
estradas florestais
para comer cabrito à montanhesa,
beber um copo de tinto caseiro,
saborear pudim escorrendo caramelo.
Neste poema de saudade, lembranças,
de pessoas boas e doces que nos
atravessaram,
do que se viveu,
das intenções para depois,
 das certezas, das hesitações,
da leveza que queríamos o ar
respirado pelas manhãs
tendo um livro na mão.
Da música ouvida e tocada
num piano cheio de histórias
e dores.
Partiu neste Outono triste
como um meteorito
galgando terra e céu
sem nos dizer Adeus.

Maria Olinda Sol

terça-feira, 19 de novembro de 2019

METRO

Dina de Souza
METRO

Hoje o metro não atravessou
a ponte de D. Luís.
Acidente, alguém se atirou ao rio?
Vá lá saber-se
o que passa na cabeça
das gentes desiludidas.
Os habituais passageiros
perdem a compostura,
barafustam pelo atraso.
Não há o frenesim
entra e sai,
a bisbilhotice matinal
do mulherio conhecido.
Abriram-se as portas,
descem os clientes
atravessando apressados
a ponte a pé.
Senhores passageiros
na próxima viagem
o tráfego estará normalizado.
Quero lá saber,
por hora pretendo sentar-me,
tomar meia de leite,
uma torrada barrada
com muita manteiga.

A LEMBRAR

Estrela Rua
A LEMBRAR

O Verão terminou há pouco
quente e seco
eis-nos no Outono
chuvoso e frio.
As tardes de Verão de outrora
eram longas e ensonadas,
as férias grandes, ensolaradas,
iguais a muitas outras
no doce remanso das raízes.
Íamos em magotes
à fruta da avó,
subíamos as árvores como esquilos
e comíamos com sofreguidão
sentados nos ramos.
O relógio da Igreja marcava
as horas atempadamente,
a mãe Ana preparava o repasto,
o pai Joaquim cofiava o bigode
para que a sopa quente
não o maculasse.
Uma paz caseira
cortada pela vozearia,
era quem mais se chegava
às iscas de fígado.
O futuro estava
ao virar da freguesia,
o Porto era perto
assim esperávamos.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

DIA DE OUTONO

Nunes Amaral
DIA DE OUTONO

Um ventinho frio
varre o tampo da mesa,
 as mãos geladas,
o livro que leio
esfolheia sozinho,
onde estás sol
enquanto as janelas
e as portadas
permanecem fechadas
neste dia escuro,
molhado.
Portas com história,
aldravas e batentes
abrem e fecham
só para dar guarida
aos moradores tiritando.
Nas varandas de ferro forjado
ninguém rega os vasos.
Eu procuro verbos
para conjugar
um Outono triste.

SEMANA DE CHUVA

Irene Gomes
SEMANA DE CHUVA

Era o vento agreste
soprando na tarde sentada.
O mundo deserto
espreitando de soslaio
as ruas molhadas.
As gaivotas fora de si
voando baixo
em redor das mesas
sem migalhas.
Era a tranquilidade
de um dia de chuva
com muitos apara águas
descendo as calçadas.
A viúva Zézinha
vestida a capa
há muito guardada
saía à rua,
faltava-lhe o leite
e a carcaça tostada.
Um pequeno almoço trivial
e o gato esperavam-na.
Era a casa gritada
com fantasmas pendurados,
o medo da noite,
o soalho gastado.
O coração ansioso,
o cavaleiro inventado
tardando a chegada.
A sombra do Outono
em sobretudo enrolada
trazendo as castanhas,
a água pé aguardadas.

CENA OUTONAL

José Luis Busto
CENA OUTONAL

Um: velhos sentados no jardim
jogando cartas afincadamente.
Dois: um homem e uma mulher
mais ausentes
num banco distanciado,
de mãos dadas
contando as gaivotas  quietas
que ali pousaram.
Três: as árvores largando a folhagem
preguiçosamente,
em dança acrobática,
enquanto os passantes
vivem este Outono
compassadamente
com berlindes coloridos nos olhos.
Quatro: despeço-me da tarde,
o dia foi triste,
com chuva miudinha,
o nevoeiro agreste.
Ausente dos afazeres,
por segundos indiferente,
foco-me na chama
do aquecedor do restaurante.
Cinco: a cidade velha vai desaparecendo,
é assustador tanto novo
no meu Porto centenário.
O café está quente,
a nata estaladiça,
por breves momentos
nada mais me assiste
senão a alquimia
da degustação perfeita.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

DIA DE FINADOS

Fernando Veloso
DIA DE FINADOS  

Hoje estou a pensar
numa fila de gente
que me ofereceu amêndoas,
fatias de pão-de-ló,
me pegou na mão
levando-me para a escola,
me penteou o cabelo,
embalou no colo.
Já sonhavam comigo
antes mesmo de eu nascer:
os meus avós, tios,
todos, quase todos
partiram.
Na casa de família
que ainda existe,
mora um primo meu,
deita-se no quarto
onde nasci eu
num parto longo e de dor.
O jardim lateral
em que a minha avó
cuidava dos jarros
esmagados
que saravam as queimaduras.
Tanta festa, ajuntamentos,
baptizados, casamentos,
ralhos, faltas de dinheiro,
mentiras, verdades cruzadas,
o padre Vigário abençoando
até a algazarra da criançada.
Tudo pertence ao passado,
restou para mim a saudade,
e, uma garrafa de cristal
onde a minha avó Olinda
guardava o vinho do Porto.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

TU

Victor Silva Barros

TU  

Hoje não vou falar de ti
não precisas de estar aqui
para eu te lembrar.
Hoje não quero abraços,
dançar a compasso
uma valsa sem fim.
Hoje não quero beber martinis
com duas azeitonas,
comer tostas de centeio
barradas a queijo da Serra.
Não vou fazer mais um poema
com cotovias dentro
cantando uma área de Verdi.
Não vou descodificar
o teu sentir codificado,
fechado num cofre de cobre.
Vou soltar um balão
de ais sentidos
que caia numa vinha madura
com muitos copos à mistura.

FOTÓGRAFO


Porfírio Alves Pires
FOTÓGRAFO  

Virou o meu pai um fotógrafo
no dia em que chegou a casa
com máquina e uns rolos na mão.
Procurava a melhor luz,
um golpe de visão
e fotografava a família
nas lembradas ocasiões.
Em dias de Comunhão,
ajuntamentos de irmãos,
festividades da freguesia,
Páscoa e Natal.
Que grande consumição
os rolos e a sua revelação,
só no Porto é que o faziam
para nossa aflição
Sentado no murete da entrada
assobiava, a catraiada corria
e em transe revia a vida
naquele papel.
Um luxo na altura
guardado até novas ordens
na gaveta do guarda fatos
do quarto da minha mãe.
Hoje são recordações,
olha a roupa dos anos setenta,
os cabelos compridos,
os óculos de tartaruga,
as calças à boca de sino
e muita, muita emoção.
A mãe de permanente fechada,
o pai de bigodaça farta
e chapéu cobrindo a careca.
O pombal no alto do jardim
repleto de pombas,
a bugambilia florida.
A avó Olinda rezando com devoção,
aceitando todos os castigos
da sua Católica Religião.
Hoje a casa está vazia
não restando sequer os retratos
ali tirados,
só um silêncio, frio e pesado.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

FOLHA A4

Filomena Fonseca
FOLHA A4  

A mão desliza
pela folha A4.
Acomodam-se os dedos
à caneta,
a linguagem à escrita.
Fervilha a cabeça
na ânsia do encontro,
marcarei no poema,
um fim de tarde seco,
uma sangria,
uma tarte de gengibre,
e, presunto de Parma.
O bar é discreto
sobre a praia.
Depois, logo se verá,
se o dia se torna claro
ou igual a todos os outros
de porta aberta
a uma agitada semana.

INDO AO PASSADO


Alberto d' Assumpção
INDO AO PASSADO  

Aberta uma brecha nas memórias
a alma cobre-se com uma manta
de mar calmo.
Ah a preparação para a primeira
comunhão, em casa de Mestra
escolhida pelo vigário da freguesia,
a hóstia que não podia ser mastigada,
a vela branca na mão.
A procissão do Corpo de Deus
com o pálio a cobrir o  Senhor Exposto,
as beatas atrás, de véu na cabeça
rezando o terço por mor dos seus
pecados, actuais e vindouros
A velha escola primária
na casa da D. Virgínia,
onde a professora primária
nova e deslocada, ensinava
os rios e caminhos de ferro
à chapada.
Que cruel era a matança do porco,
os grunhidos do pobre animal
toda a santa semana
castigavam as cabeças da criançada.
As primeiras saias mini
nos corpos roliços das moçoilas,
credo em cruz, a escandaleira.
Meninas de famílias consideradas
querem agora ser rameiras.
As mulheres acomodadas
à vida de servidão,
limpam o ranho do nariz ao pimpolho,
descansam as pernas fatigadas.
À noite pela janela aberta
entram os odores das flores do jardim,
sentada na cama entre almofadas
abro o caderno de linhas
e registo as memórias num poema.