terça-feira, 29 de janeiro de 2019

BARALHAR E TORNAR A DAR

José Gonzalez Collado
BARALHAR E TORNAR A DAR

Vi tudo o que havia para ver
no tempo que me foi dado
para o fazer,
desmontava as imagens
sem perceber os porquês
de actos sem explicação.
Caía à noite uma chuva
miudinha, fria,
punha os pés na banqueta
de pinho,
encolhia a alma
esperando que a chuva passasse.
Olhava a estante grande
e cheia,
escolhia um livro,
desta vez um romance,
com muitas descrições de Paris,
viajava pelas ruas iluminadas,
bares ruidosos,
perdia-me nos jardins cuidados,
a catarse feita
adormecia no sofá gasto.

FLASH

José Gonzalez Collado
FLASH

Aqui, outra vez,
o hall da entrada iluminado,
o relógio antigo parado,
os quadros nas paredes esquecidos,
o atendedor de chamadas
sem mensagens.
A sala grande, a lareira fria,
o sofá coçado,
muda-se amanhã ou nunca,
o copo sujo
da última bebida tomada.
As árvores por aparar
tomaram conta do jardim,
as orquídeas secas.
Uma folha de papel escurecido,
a caneta ao lado,
o poema inacabado.
Flores tentando romper a terra,
presa e ressequida.
Vozes ao fundo, passado,
erguendo copos em brinde
cheios de esperança e fé.
O tempo parou,
de novo falo,
lembrando dias vividos
neste local abandonado.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

IR

José Gonzalez Collado
IR

Nos olhos azuis rasos de mar,
passa o eléctrico rumo à Foz,
o dia atípico esvai-se,
a alma perde-se no areal.
Partir às vezes é solução,
quando se olha em redor
e nada nos acrescenta.
nem nós à cidade, ao mundo,
enredados em baldes de água fria.
Mesmo a dizer adeus
ficarei nas ruas, nos lampiões,
no sol laranja sanguinia
desaparecendo no horizonte,
nas dores da ausência,
nos copos de sangria
bebidos sofregamente
numa varanda sobre o Douro.
No velho café démodé,
na ainda mais velha cadeira
onde me sento,
no tampo de mármore da mesa.
Vem-me às mãos
um caderno amachucado,
alinho palavras sem sentido,
medos do amanhã e do depois,
de outros tomarem as rédeas,
das promessas por pagar.
A madrugada desloca-se
na partida de um comboio do cais,
a saudade é visceral,
permanece firme
no nevoeiro que envolve o rio
e em mim.

A NOITE CHEGOU

José Gonzalez Collado
A NOITE CHEGOU  

Dependurados no corrimão
de ferro forjado,
limitando as escadas do jardim,
as luzes acinzentadas da lua
tornam mais reais
os contornos do rosto e das mãos.
Iluminavam as janelas da alma
arrastando para longe os medos,
as depressões,
tornavam lesta a imaginação
rompendo o silêncio,
a música, as rosas,
sentando-se no laranjal
olhando à volta, registando.
Tão verdadeiro o momento
nu e existente,
para a par com o vento forte
equilibrar  sentimentos
de extrema e absoluta paz.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

FÉRIAS DE VERÃO

José Gonzalez Collado
FÉRIAS DE VERÃO  

A rosa floresce rubra
num jardim antigo
de uma casa mais antiga ainda.
Dobra a coluna
sem tocar o chão,
leva a tesoura ao caule
e corta a beleza etérea
da rosa perfumada
agora na sua mão.
Ausente o ano inteiro
numa escola escura
e velha,
recomeça
sempre que chega a casa.
Corre contra o vento leste
calcando trigos e centeios
até chegar ao celeiro
donde pode do telhado
alcançar ameixas
maduras, doces.
Ao fim da semana a geleia,
o pão cozido na hora,
o leite da vaca malhada
a borbulhar na cafeteira.
A mão esquerda
a tentar alcançar o gato
com direito a restos
porque caça ratos.
Ah noites serenas
com luas a bater na janela,
sonhos a cavalgar nos prados
para se perderem na bruma.

UMA ORQUIDIA

José Gonzalez Collado
UMA ORQUÍDIA  

No planalto ventoso,
agreste,
semeado de fetos e arbustos,
com rochas
arranhando o infinito,
silenciosa a orquidia
rompe um tronco
de um carvalho vetusto.
Linda e generosa
cai-me nas mãos,
enfeitará o meu quarto neutro
por duas semanas
ou mais.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

CONTINUAR

José Gonzalez Collado
CONTINUAR  

Viver
sem ser um lugar
de fogo e lava,
na pequenez do ser,
continuar.
Hoje viajar
em redor do pensamento,
o sonho é mais tangível
que a realidade.
Comer as frutas reais
penduradas na janela
a secar.
Relativizar,
apoiar-se nas valias,
continuar.
Pisar o conhecido
se existe
em cima de coisas
construidas por mãos
de osso e carne.
Sensibilizar
os vazios muros,
Vê-los como experiências
a esmiuçar.
Metamorfoses de voo
rodando a alma,
continuar.
Sem recurso à ciência,
à sabedoria,
libertar o grito,
fundir com o universo,
continuar.

DESCRIÇÃO

José Gonzalez Collado
DESCRIÇÃO  


Um luar difuso
indefinido
entra sem pedir licença
no meu quarto de mansarda.
Entrou e quis ficar
bordando o tempo
com linhas claras.
Conversámos os dois
sem chegar a conclusões,
ensonados depois
na companhia um do outro
dormimos como sempre
virados para a janela.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

ANO VELHO, ANO NOVO

Salvador Dali
ANO VELHO, ANO NOVO
  
Meia noite
o relógio anuncia repetidamente
o ano acabou.
Um par sai de casa
com uma garrafa de Murganheira
na mão,
têm ânsias, têm sede
de mergulhar na praça,
centro da cidade em festa.
Ardem-lhes os olhos
fixados nos brilhos de néon,
falta-lhes rumo, futuro,
e dançam como se fosse
acabar o mundo.
Sem pressa, ficam
até à última réstia de som,
são mais uns na multidão
a atordoar-se à espera
que o ano comece,
lhe saia o Euromilhões.
Cansados da correria
de baixo para cima,
de cima para baixo,
entram num café,
pedem uma cuba livre
com muito rum,
espreitam a noite morrinhenta,
as contas já foram pagas,
faltam vinte e nove dias
para outro fim do mês.

QUESTIONAR

Ana Pedro
QUESTIONAR  

Doem-lhe os lábios carnudos
de tanto forçar sorrisos
a conhecidos que passam.
Prefere passear à noite
pela cidade meio adormecida
que se descaracteriza
por via de tanto turistame.
Magnificas as sombras fugidias
sobre as claraboias envidraçadas,
os cem passos de fantasmas
macambúzios e solitários.
Há sempre uma surpresa
o gato que salta ao caminho,
o tonto entoando a Portuguesa,
o músico de rua
soltando a última nota sentida,
O namorado declarando-se
com um ramo de violetas.
Burguês, levemente de esquerda
de tanto pensar na utopia,
enreda-se no pensamento,
baralha-se,
agora só quer chegar a casa
para poder fumar um cigarro.