terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

PAISAGEM

Fidel Latiesas
PAISAGEM  

Cinza nos muros rugosos
da casa abandonada,
roseiras, azáleas, dálias,
lírios, jarros, agapantos
sarapintando o jardim aquietado.
Abre-se a natureza em flor,
cheira a fertilidade,
abanam os ramos das árvores
ao som da brisa que se faz sentir.
Sentada no banco de ferro
enferrujado,
olho os montes ao longe,
um vento marítimo
dança com os cabelos
diante dos olhos,
chegam notícias de longe,
esperam vorazmente
o sacrifício do cordeiro,
no altar dos interesses
de quem precisa do petróleo
da  dorida Venezuela.

PEDIDO

José Gonzalez Collado
PEDIDO

Nós, mortais,
pequenos, indefesos
perante as armas do poder,
apenas temos
o pensamento livre,
com as restrições devidas
a informações manietadas.
A ideia de homens-bons
sentados na Casa dos Vinte e Quatro
decidindo sabiamente
o destino dos vizinhos
foi-se.
Resta o abuso, a corrupção,
o viver principescamente
à nossa custa
enquanto contámos tostões.
Ah poetas do meu país
indignem-se,
sejam o facho, a luz,
o inicio de algo mágico,
limpo, bom, novo.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

INVERNO

José Gonzalez Collado

INVERNO  

Falo no Inverno,
as laranjeiras cheias
e os limões
quebrando os ramos.
O resto a geada queimou.
Retiro as últimas pencas,
os últimos brócolos roxos
espigados.
Há muita compota
no frigorífico,
doce, cremosa,
para saborear devagar
no pão quente de centeio.
As courelas ficam num alto,
os olhos bem abertos
fotografam a paisagem.
O silêncio absoluto,
roçam as palavras na cabeça,
é certo quererem
impressão na página última
do caderno de poemas.
Parada, sou dali,
daquela natureza verde, desperta,
presente, eterna,
parte da vida, parte dos sonhos.

A POMBA

Jorge Feio

A POMBA 

A pomba caída no chão
baloiçando com o trepidar
dos carros,
as asas penduradas
num corpo que não é nada.
O sopro apagou-se
os pássaros não têm alma,
não vão para o céu,
morrem e acabou-se.
Não há obrigação
de lhes assistir com missas,
de os enfeitar com flores,
dão-se à natureza
e assim ficam.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

CAPELA DO LUGAR

José Gonzalez Collado

CAPELA DO LUGAR

A porta de madeira maciça,
entreaberta,
da capela saía uma fumaça,
vestígios de incenso
dos cultos de Maio.
A Senhora das Neves
rechonchuda, de azul vestida,
sorria,
elevando nas mãos
dois cachos de uvas maduras.
Um bêbado de bagaceira
bebida à boca do alambique
entra de rompante
e cai no banco de madeira.
Os anjinhos olharam
a cena inusitada,
ser a casa de um sem abrigo.
O frio lá fora gelava,
a capela era a janela
donde se via a aldeia
pintada de geada,
o rio preguiçoso, dolente,
sem pressas a caminho
de cair no Douro.
A menina ensonada
e que nada incomodava,
deitou-se na outra ponta do banco,
apagou-se não vendo mais nada.

DEVANEIOS

José Gonzalez Collado

DEVANEIOS

Nas incertezas do presente,
num tronco rasgado
traço círculos de ouro
encostados a cubos filetados.
Pouso os olhos neste sítio
que podia ser o meu sítio,
onde aguardo o voo da borboleta,
num resguardo protegido
de natureza ainda intacta.
Abandono-me ao meu respirar
sem gente nem pássaros,
contando a cores do arco-íris
no curvado céu plúmbeo.
Ao lado uma prenda
o cesto de ameixas doces,
o pão de nozes e canela,
água da fonte, fresca e cristalina.
Na mão um copo de vidro
verde e martelado,
uma sede sôfrega
emborca a água.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

DIZERES

José Gonzalez Collado
DIZERES  

Corredores sem fim.
Vagas mansas.
Mar avançando.
Sonhos purpurina.
Presença de cavalos
sem freio.
Sol iluminando.
Um lavar de alma.
Filmes muitos,
passando em écrans
mágicos.
O tempo curto.
O fogo sagrado.
Os corpos suados.
Um anúncio de néon
com poemas de amor
dentro.

FAMÍLIA

José Gonzalez Collado
FAMÍLIA  

Sandim,
lugar do Calvário,
ao cimo a capelinha
da senhora das Neves,
uma casa igual
a muitas outras,
ali nasceu o meu pai,
na casa que foi dos meus avós.
Soalho de tábuas corridas,
a sala, uma mesa grande,
santuário cheio de imagens
divinas.
A cozinha, centro da casa,
o louceiro de pinho,
guardando a louça
de barro cozido,
a lareira sempre acesa,
achava-a
do tamanho do mundo.
O fumeiro rescendendo,
a resina estourando
na lenha mal seca.
As batatas cozidas com pele
na panela enorme de ferro.
Os tios cheios de fome
comendo à socapa,
engasgando-se.
A visavó Margarida
cortando a broa de milho,
meticulosamente,
como se fosse avaliada por isso.
Os rituais repetidos
no dia a dia de gente pobre.
Trabalhar, alimentar,
sobreviver em tempos difíceis.
O relógio antigo
batendo compassadamente
as horas.
As tias mais novas
alisando os cabelos pretos.
O meu avô tirando do baú
o violino
e eu espantada a ouvir
os sons lindos
saídos da caixa de madeira.
Na parede alinhados os retratos,
a visavó paterna,
o avô e a avó,
os quatro primeiros rebentos
de uma prole imensa.
Dessas gerações entrelaçadas
restámos nós os bisnetos,
ainda ardendo em chama
enquanto vislumbrámos
a eternidade.