terça-feira, 25 de junho de 2019

FINITO


Collado
FINITO  

O dia morre no horizonte,
bem cansado, escurecido,
vai olhando  a lua
iluminando os sonhos
e as vozes adormecidas.
O fio de calor
que sai da chávena
aconchega a noite,
aquece as mãos doridas
de tanto que descascaram fruta
para fazer marmelada.
Esquecida a correria do dia,
as horas de trabalho suado,
coloco no cabelo solto,
a fita de cinza prateada.
A cabeça leve, leve,
tomba sobre o sofá
e toma conta finalmente
do meu desenfreado destino.

A CADEIRA


Collado
A CADEIRA

A cadeira encostada
à parede larga
alinhada
para ver quem passava.
Um céu cinzento
para abraçar
o meu estado de alma.
a folha de papel
pardo
a interpretar os meus poemas.
O que olhei para o portão
a ver se entravas,
queria dar-te um bombom,
o primeiro da caixa quadrada.
Oh se o céu se abrisse
e eu me perdesse no infinito
com asas de cores várias.
Vou agora no comboio rápido
apanhar a lua.

terça-feira, 18 de junho de 2019

DESCRIÇÃO

Collado
DESCRIÇÃO

Disseram-me
que o tempo vai mudar,
fechadas as portadas,
cerradas as portas,
venha a tempestade,
venha o vendaval.
A casa fica mais escura,
os quadros mais escondidos,
as paredes mais gastas.
Qualquer dia
compro um branco magnólia
e pinto as paredes
da cor que eu gosto,
da cor de antes de desbotada.
Foi uma semana de mau tempo,
de árvores a vergastar,
de coração apertado,
de surdina nas ruas desertas.
Há certa esperança de melhoria
para sexta feira,
ai esplanadas do Porto
à minha espera
com as gaivotas ao redor
teimando em comer as migalhas.
Os peixes no rio vindo à tona
e os velhos a inchar ao sol.
Serve-nos o tempo
desde que brilhe o dia,
os pássaros limpem as penas,
se esqueçam as mágoas expostas,
se dessipe o vento e a chuva.

VIM

Collado
VIM

Vim porque gosto de poesia
ainda não é proibido gostar,
e eu pretendo sonhar,
sonhar cada dia
em cada poema falado.
Estou aqui
porque cada dia
é um prato de framboesas
servidas frescas,
envolvidas no orvalho
da manhã.
Vim porque fica de fora
a mentira, a corrupção
que grassa no meu país
esmiuçado por comentadores
pagos.
Antes de vir sorri,
falarão de amor,
de liberdade,
da vida mais que da morte,
de palavras com asas
pintadas com gaivotas,
de glória e redenção,
da alma descansando,
da fragilidade das coisas,
dos seres.

terça-feira, 11 de junho de 2019

VIDAS

José Gonzaléz Collado
VIDAS  

Há vidas mal engendradas
acontecem como as outras,
uma mãe, a dor de parir,
o nascimento da criança.
O novo ser chora,
tem um corpo escorreito,
um olhar grande
agarrando todos os que estão
por perto.
Cresce, vai para a escola,
aprende fácil ou não,
bate nos colegas
com alguma veemência.
É dinâmico, mestre em liderança,
percebe de números
e diz que isso leva ao progresso.
Gosta de praia, de viajar,
fanático por bola até dizer não.
Não escolheu o caminho,
foi por ali derrubando arestas.
à noite comia maçãs reinetas
e bebia um porto velho.
Faltou-lhe o ouvido apurado
não gostava dos clássicos.
Um dia perdeu-se
no denso e obscuro mundo,
alguém se aproveitou
e tomou o seu pedaço.
Tal como um eremita
escolheu uma montanha
e no sossego da serra
é um descanso
comer sardinhas assadas,
beber malgas de tinto verde
tingindo de vermelho os lábios.

PEDIDO


José Gonzaléz Collado
PEDIDO  

Mortais, indefesos,
pequenos, assustados
face às armas do poder,
resta-nos o pensamento
livre, aberto,
lutar contra a informação
manietada.
A ideia de homens-bons
sentados na Casa
dos Vinte e Quatro
decidindo sabiamente
o destino do povo,
foi-se.
Temos o abuso, a corrupção,
o luxo à nossa custa
enquanto contámos tostões.
Ah poetas do meu país
usem, abusem
do direito à indignação,
sejam o facho, a luz,
o inicio de algo novo
e transformador.

terça-feira, 4 de junho de 2019

MEMÓRIAS DE INFÂNCIA

Anabela Mendes da Silva

MEMÓRIAS DE INFÂNCIA  

Às vezes perseguíamos sapos
para ouvir o seu coaxar
grave e misterioso.
Limpávamos o nevoeiro
das framboesas
e pintávamos as mesas de vermelho.
À noite ouvíamos o trote
de cavalos brancos
galopando contra o medo
enquanto bebíamos chá de limonete
e devorávamos talhadas de marmelada.
Horas de infância fixadas na névoa
melhor era esse mundo
do que o que nos esperava.

TEIMOSIA

José Gonzaléz Collado

TEIMOSIA  

Teimar olhar o céu,
querer comprar a lua.
Teimar correr até à paragem,
ter como oferta o bilhete.
Teimar participar
em manifestações anti-sistema,
insultar o polícia que as trava.
Desejar o centenário da minha mãe
Sabê-la morta.
Maquilhar-me
frente ao espelho que emagrece,
achar o vulto projectado
em boa forma.
Teimar em querer ver desfocadamente
a violência, o sangue, na Síria,
ouvir violinos tocando Vivaldi.
Tapar a voz da vizinha
que se expõe à janela,
o gato é que se espanta
e a arranha.
Ouvir anedotas não recomendadas
gozá-las sem achar piada.
Beber copos de água
sonhando com champanhe
e com um mundo fora da realidade.