terça-feira, 24 de abril de 2018

DO NADA SE FEZ LUZ


José Gonzaléz Collado
DO NADA SE FEZ LUZ

No príncipio era o nada,
o escuro, o silêncio.
Depois uma explosão,
um vulcão rompendo
nas entranhas da terra.
A lava pousada,
a terra arável,
as plantas crescendo
bafejadas pelo sol.
Deus decidiu
fez-se luz,
os animais
multiplicaram-se,
ocuparam espaços.
Tornaram-se o princípio
e o fim,
a resposta extasiada,
a essência, a crença,
a vida acontecendo
Tremeluzente
nas mãos do homem
um sopro diferente
para o último ser da criação.

ANIVERSÁRIO

José Gonzaléz Collado

ANIVERSÁRIO 

Comprou-lhe uma pulseira
de pérolas
sonhada desde o Natal passado.
Revirados os bolsos vários,
contou todos os tostões,
pediu uns trocos à mãe,
mas a prenda não faltou
festejando o aniversário.
Vinte anos, Teresa,
só se fazem uma vez.
Vestiu o fato escuro,
o que tinha guardado
no armário
para tais ocasiões.
Arrumou o cabelo revolto,
forrifou o lenço branco
com aroma de pinhal.
Ela apareceu,
a boca cor de carmim,
o sorriso de lua.
Ele acenava-lhe
do outro lado da rua.
Na mão o presente,
no olhar um ramo de girassóis,
na mesa reservada
ostras  e uma taça de champanhe.

NESTA PRIMAVERA

José Gonzaléz Collado

NESTA PRIMAVERA 

Manhã jovial
com cantos de pássaro
nos ramos das macieiras.
Poderosa terra
alfobre de raízes,
a luz rasa
entrando pela fresta
da janela.
A casa antiga
herança dos avós
embalando o marulhar
das águas do ribeiro.
O azul do céu
salpicado de gaivotas,
a gente imperfeita,
o corpo inseguro
amparando-se ao restolho
do aparar dos arbustos.

SALA


José Gonzaléz Collado
SALA 

O sol
não entra à tarde
na sala.
Uma lanterna acesa
silencia os contornos,
 o medo,
os movimentos rápidos.
Na parede os quadros,
paisagens reféns
de terras nunca visitadas,
A sala, muro
entre mim e lá fora.
Aconchego
no sítio exacto
onde quero estar.

terça-feira, 17 de abril de 2018

NARRATIVA



António Bártolo
NARRATIVA

A rua inclinada de Santo António,
o eléctico amarelo
subindo.
Nas costas  S. Bento
o comboio que chega,
a azáfama.
Muita música
na rua das flores,
todos querem ganhar
com os turistas.
A chuva continua,
fria, miudinha,
chuva há mais tempo
que a paciência.
Os braços enferrujados,
as mãos querendo
tocas rosas.
O café quente na Império,
os jornais voando,
fila para o Majestic,
o Porto planando.

UMA VEZ POR ANO

José Gonzaléz Collado

UMA VEZ POR ANO

No Coliseu do Porto
havia o circo.
Cada Natal
brilhavam as luzes,
tocava-se saxofone,
o palhaço
de nariz arrebitado
fazia aparecer dos bolsos
grandes ramos de rosas
e pedia aos amáveis
meninos e meninas
que batessem palmas.
Numa correria louca
distribui à plateia,
deslumbrada,
bombons e gargalhadas.
Cabia nas suas mãos
a infância de todos nós.

CAMPO


José Gonzaléz Collado
CAMPO

Sentada no alpendre,
cogito,
será que um menino
da cidade
sabe o que é
um ancinho?
Que significa mondar?
Estacar ervilhas?
Coisas simples
para quem
nasceu na terra.
Neste chão
nesta terra fértil
subo com as raízes
da macieira,
desabrocho em frutos.

LEMBRAR


José Gonzaléz Collado
LEMBRAR

Jovem, inconsequente,
perdendo tempo
diante de um espelho
que de tão velho
não devolvia a realidade.
Apanhava o cabelo
num rabo de cavalo,
enche-se de bijutaria,
torna carmesim os lábios.
Sapatos de salto alto
mini saia colorida.
Correndo pelas ruas
pássaro alado
esperando voar.
Real, real, foi o beijo,
de rompante, meio frouxo,
roubado sem aviso
debaixo do velho plátano
enfeitando o jardim do bairro.

terça-feira, 10 de abril de 2018

A CASA DA MINHA MÃE



José Gonzaléz Collado
A CASA DA MINHA MÃE 

Sobe-se uma escadaria
o jardim ao cimo reclama
um pouco mais de atenção.
As buganvílias, as azáleas,
as hortenses, as dálias
meio murchas
suplicam água.
Nos baixos uma cave
maior que toda a casa
espalhando-se
abandonados
as enxadas, os ancinhos,
os gadanhos, as forquilhas,
as foucinhas, os cestos,
as tesouras de poda
mal afiadas.
A horta é um arco iris de cor
as beterrabas, as beringelas,
os tomates, os pimentos
as cenouras, as cebolas.
O forno de lenha há muito
apagado, silencioso,
guardando as memórias
das fornadas de regueifa
cheirando a canela e limão,
a Páscoa, a aniversários,
a gaudeo da filharada
comendo o ovo frito
que sobrou.
A sabor da compota de alperce
acre e brilhante,
a marmelada espessa
em tigelas verde alface
compradas no fim da feira.
Às taliscas de presunto
cortadas à pressa
não vá a mãe dar por ela.
O cheiro a Primavera
os sentidos libertando-se
nos ciclos anuais da natureza.
O Inverno rigoroso
atravessado as janelas,
o nariz colado ao vidro
querendo parar o frio.
A paz que fazia
naquela calmaria
enquanto se comia
o assado de domingo
debaixo das videiras.

UM LIVRO


José Gonzaléz Collado

UM LIVRO

Amontoado de páginas
lavradas em silêncio,
antes de o abrirmos
é o escritor e a gráfica.
Cheira a tinta,
a ideias trabalhadas
ao que existe
ao que foi inventado.
Tem voz, sentimentos,
leva-nos pela mão
a limpar a caverna
dos medos, do escuro.
Explode em enredos
encrespados,
em corpos suados,
em tardes de estio roxas
esperando a merenda.
Amigo de horas vazias
ouvindo em conjunto
o bater do relógio,
o afugentar das mágoas,
a toma do café
salpicando as bolachas
 crocantes
de gengibre e manga.
Braço dado na, madrugada
ensonados, esfregando os olhos
lendo ainda mais um capítulo.

QUERER MAIS



José Gonzaléz Collado
QUERER MAIS 

Deixo seguir os olhos espantados
até à foz onde acaba tudo,
onde os barcos partem
encaixotados que estão os sonhos.
Onde por cima das ondas
o restolho da espuma forma ondas,
o marulhas das águas
preenche os sentidos.
Onde no passeio marginal
os namorados se lambuzam
em beijos atrevidos,
as crianças rolam
em volta dos volumosos vestidos
das derretidas mães.
Onde para lá do mar somos nós
deixando a inquietude para trás.
Acalmada a comoção
eis à  nossa frente frutos tropicais
numa travessa de juncos servida.

terça-feira, 3 de abril de 2018

UM ABRAÇO


Mário Couto
UM ABRAÇO

O abraço é breve
sem razão, sem porquê,
pássaro correndo
contra o vento,
mão semeando
pensamento transitivo
no asfalto da cidade.
Na cabeça um vazio
contrapondo-se ao rio
sabendo ao certo o caminho
na direcção da foz.
Canto nostálgico
das gaivotas imperiais
pousando firmemente
no capot  d e um carro
donde se vê o casario
do outro lado da marginal.

UM RETRATO

José Gonzaléz Collado
UM RETRATO

Francisca da Conceição
de bibe aos quadradinhos
e laçarotes coloridos
saltitando a caminho da escola
com saco a tiracolo.
A primeira a chegar
ocupando o seu lugar
no pátio das brincadeiras
por entre corpos deslizantes.
Real e tão etérea
tranças doiradas
de conto de fadas
baloiçando entre as searas,
um sorriso
extravasando o seu mundo.
Onde está esse brilho?
alquebrada, enrugada,
perdida nas recordações,
quem te cortou as asas?
quem te impediu de voar?

INFÂNCIA E VERÃO


José Gonzaléz Collado

INFÂNCIA E VERÃO


Nas tardes de Agosto
havia calor de mais,
saíamos na frescura da manhã
a percorrer os campos
de centeio e papoilas.
A seara ondulava
e arranhava as pernas desnudas
ao de leve.
Subíamos o telhado
da casa da eira
lambuzando a cara
de pêros maduros.
As amoras ficavam para depois,
negras, sedosas,
apanhadas pela fresca
e guardadas pela minha mãe
em compotas etiquetadas.
O ribeiro da aldeia
cumprindo a sua missão
refrescava os corpos suados,
pondo fim às traquinices
da crinçada desocupada
nas férias de verão.



PEDIDO

José Gonzaléz Collado
PEDIDO

Azul é o teu olhar,
o mar em dia sim,
a ânsia de te encontrar,
fala-me em português
Azul são as tuas mãos
onde caibo inteiramente,
azul é a algarviada
da tua língua natal,
fala-me em português.
Azul é um café expresso
à beira praia plantado,
a sofreguidão do amor
em versos despejado,
fala-me em português.
Azul é um ramalhete
de lírios de todas as cores,
a zul é a voragem
de nos sentirmos aqui,
fala-me em português.
Azul é a lua a escoar-se
por entre as listas do arco-íris,
azul é sussurar
ainda é bom sonhar,
fala-me em português.