quarta-feira, 23 de maio de 2018

BAILE DA PARÓQUIA


Giga Coelho
BAILE DA PARÓQUIA

As raparigas
de vestidinhos frescos,
coloridos,
sapatos de biqueira fina,
levantados em tacões agulha.
Enlaçam-se emotivas
a mocetões desconhecidos.
Os olhos das mães rolavam
sem ver
os corpos tocando-se,
as emoções ao rubro,
os beijos de raspão,
as juras de encontros
a posteriori.
Os intervalos impostos,
a água gelada no bar
refrescando do calor
e dos ímpetos.
Volta a tocar a música,
há que rolar,
nos braços do primeiro par.
Galopa a cabeça
na vontade de um novo baile,
apenas ali era permitido
voar em braços alheios.

O MEU TRISAVÔ FERREIRO

Molina
O MEU TRISAVÔ FERREIRO

Na cave um alambique,
o fedor a aguardente
espremida e embalada.
Os dedos arqueados
do trisavô António,
vergado pelo poder
do martelo e da bigorna.
O mata bicho
era ali à bica,
subindo à oficina
já não sentia
o calor da fornalha.
Alinhava enxadas,
foucinhas, gadanhos,
arados e grelhas.
E assim levava a vida
e sustentava tanta filharada.
Ao domingo fazia a barba,
penteava e encerava o bigode,
vestia o fato preto
e pedia a deus perdão dos pecados.

PRETENSÕES



RAFAEL DIÉGUEZ FERRER
PRETENSÕES

Um dia ainda hei-de
partir o cimento da entrada
cobri-lo com granito
debruado a jasmim.
Com tábuas recicladas
farei um baloiço grande
onde caibam dois
tentando ser pássaros.
Contarei anedotas tolas,
sem sentido,
  para que se riam
esquecendo a distância
entre os outros e nós.

ESCOLHAS



ESCOLHAS

No tempo da minha
cristã educação,
embora pequena,
olhando para os anjinhos
gorduchos e sorridentes
da capela do Calvário,
preferia estes
a Cristo pregado na cruz.
Festa e redenção,
sacrificio e dor,
prefiro a festa
sem joelhos esfolados
sem remorsos de pecados
feitos e por fazer.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

A TIA MARIAZINHA


Fernanda das Neves
A TIA MARIAZINHA

A minha tia Mariazinha
noite e serão
de agulhas e lãs
na mão
fazia um tapete colorido
para me ofertar.
Passados anos
o tapete não se concluia.
Tal como Penélope
que fazia e desfazia
o que a tia queria
era a ideia de presentear.

NOITE


Orlando Falcão
NOITE

No silêncio frio da noite
há momentos de serenidade,
o último passarito apaziguado
solta o derradeiro trinado
recolhendo-se no ramo
da árvore mais alta.
Vestido de nevoeiro e segredos
o escuro poisa em tudo,
entra pelos trincos da porta
inspirando alguns poetas.
As palpebras sobem e descem,
o sono não chega,
maldita insónia
engolida num copo de água fria.
Com algum custo
espremem-se as palavras
nasce de repelão
mais este poema.

DESPERTAR

Collado

DESPERTAR

Ao amanhecer, tudo muda,
a luz rasante invade os cómodos,
as cores neutras tornam o dia
mais doce, mais autêntico.
Alegra o despertar na bálburdia
do pequeno almoço.
Brilham taças de fruta fresca,
o espumoso leite quente,
o de negro centeio
estalando na derretida manteiga.
Ah a verdade de ter que levantar,
correr para a rua estreita,
apanhar o autocarro lotado,
ganhar o pão com custos exagerados.

TEMPOS IDOS


Collado
TEMPOS IDOS

1969,
entrada triunfal na Universidade,
o edificio vetusto
entre o velho hospital
e as cavalariças da guarda a cavalo.
O pé alto do edifício
mais alto que todos os sonhos.
Um medo esquisito
percorria a galope o meio da espinha.
As madeiras gastas,
os bancos infindos do anfiteatro,
a voz imposta
dos professores catedráticos.
A biblioteca pejada de livros,
os alunos transportando nas mãos
as vitórias futuras a ganhar.
Tomava-se uma bica no café Piolho,
estudava-se no café Estrela
em troca de um iogurte azedo
e o olhar cúmplice dos garçons
que por tão pouco
nos permitiam uma tarde de trabalho.
Contado tostão por tostão
de vez em quando uma sessão de cinema
no teatro S. João.
A vida fruia em gargalhadas sonoras
éramos jovens e felizes.

terça-feira, 8 de maio de 2018

UM AVÔ PESCADOR


Collado
UM AVÔ PESCADOR 

Um avó pescador
não estava no ADN da família,
carnes duras,
marcas fundas 
desenhadas pela maresia,
olhos cor das redes
lançadas na escuridão.
Preferia a família para a filha
a rudeza da terra fértil,
o sabor a milho e a girassol,
poucas horas dormidas
pelas regas do cortinhal.
A rapariga lutava
entre a liberdade do horizonte
e a certeza de pão à mesa.
Plantou-se no seu peito
as histórias de neblina, gaivotas,
sereias, monstros agarrados
aos barcos.
Num silêncio salgado
deixou o pai magoado
e escolheu o mar.

FINAL


ADIASMACHADO
FINAL 

Na família
há o chamado funeral
onde se enterram os despojos
e se esquece a vida.
Na cabeça os cifrões
cabendo no canto esquerdo
de uma folha A4,
o resto um lamaçal vazio.
Medrosos, mesquinhos,
são todos,
uns agigantam-se na crueldade,
outros encolhem-se na cobardia.

OS PRIMEIROS TACÕES

Victor Silva Barros

OS PRIMEIROS TACÕES 

Os primeiros sapatos de tacão,
ver as coisas um pouco de cima,
o mundo era mesmo meu.
A distância entre eu
e os adultos, encurtou-se.
Usava-os com meias de seda,
ao domingo,
celebrando o dia do Senhor.
Mais um adorno
como a bandelete no cabelo,
a bolsinha com vidrilhos
a tiracolo.
Garbosos os passos
tão segura a caminho do futuro,
ainda não sabia
dos percalços da calçada
ao dobrar da esquina.

CISMANDO O RIO


Collado
CISMANDO O RIO

O rio corre espumoso
com pressa
de se lançar ao mar.
Teus olhos turvos
da cor da água
de tanto o ver
já não o vêem.
No enleio das memórias
alcançaremos ainda
um barco tosco
levando-nos
pela noite dentro
até ao nascer das águas
até ao princípio do mar.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

A AVÓ OLINDA


José Gonzaléz Collado
A AVÓ OLINDA 

A avó Olinda
mãe do meu pai,
era tão beata, tão beata,
daquelas de terço contado,
diariamente, pós jantar,
preces ao deitar,
missa ao domingo,
em dias santos
e santificados,
e confessos semanais.
O oratório da sala
com Cristo martirizado
ao colo de sua mãe
dolorosa,
assustava-me,
à noite tinha medo
de o olhar.
Assistiu ao baptizado
de todos os netos e bisnetos,
conforme a prática cristã.
Total o seu amor
ao Catolicismo,
sofrida ajoelhava
esquecendo as dores da vida.
Os dedos angulosos
Esticavam-se
tirando do fundo do medo
os deuses por si criados.
Vergada ao peso da alma
só se levantava
confessados todos os pecados,
perdoadas todas as leviandades.
Se fosse viva gelaria
ao ver os poucos frutos
da sua educação cristã.

GLICÍNIAS


José Gonzaléz Collado
GLICÍNIAS

As glicínias
em cacho, pintadas de lilás,
espreitam todos os muros
do país,
os limpos e caiados,
os abandonados
de pedras negras amontoadas.
Espalham em seu redor
um cheiro forte e doce
transportando Primavera
às ruas de todos os lugares.
São brincos dependurados,
enfeitando as cores,
do arco-íris na cal.

PROCISSÃO DA QUARESMA


José Gonzaléz Collado
PROCISSÃO DA QUARESMA 

Estarrecida
vendo o Senhor dos Passos
com toda a dor nos ombros
e ninguém, ninguém
para o ajudar.
O tempo esconso,
as beatas contritas,
porque não pegar
nele ao colo
e curar-lhe as feridas?
Bate o meu coração inquieto
querendo muito
que fosse só uma estampa
e não um episódio
de uma vida matada,
por prometer mudanças.

ESCOLA PRIMÁRIA

José Gonzaléz Collado

ESCOLA PRIMÁRIA 

Aquela escola primária
sem o ser,
casa alugada
com quartos, sala,
cozinha e privado.
O quadro negro de lousa
ocupava a parede
 mais larga.
À quarta feira
pendurava-se o mapa
de Portugal,
e viajava-se.
Cantavam-se as linhas
férreas,
batendo cadentemente
palmas.
Com pioneses coloridos
assinalavam-se os rios,
afluentes e subafluentes.
À sexta contava-se
o hino nacional
e beijava-se a bandeira.
As contas faziam-se
usando os dedos.
Venerava-se todos os dias
a professora esguia
como se fosse a nossa mãe
ou uma estrela guia.