terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

UMA MANHÃ COMO AS OUTRAS

José Gonzalez Collado

UMA MANHÃ COMO AS OUTRAS  

Cada manhã abro a janela,
o ar fresco, intenso,
espalha-se pela sala.
Tudo fica mais limpo,
mais claro,
sento-me na cadeira
junto à mesa de pé de galo.
O chá de camomila está quente,
o croissant francês amanteigado.
Esta filosofia simples agrada-me,
não pensar,
ter fome, comer,
ser  real, viver sem pressa
os dias do calendário.

ACONTECIMENTO

José Gonzalez Collado

ACONTECIMENTO

O dia ia surgindo,
insípido,
de mansinho.
O marasmo
era mais um elemento do dia
como ontem e anteontem.
E se hoje acontecesse
algo de extraordinário?
Sentado no café do costume,
numa das ruas centrais
da cidade,
olhava em volta.
Naquela geografia
do quarteirão familiar
nada de vozes alteradas,
os  bêbados, os tripeiros,
não manifestavam
comportamentos a criticar.
Do nada, surge uma rapariga,
obliqua,
com o cabelo rapado de lado,
de boca escancarada
beija o namorado.
O ruído de fundo do café parou
em uníssimo
todos os clientes sorriram
e bateram palmas.

OLHAR O MUNDO

José Gonzalez Collado

OLHAR O MUNDO

Olho o mundo, não o vejo,
não sinto a missão suprema
para que foi feito.
Sendo tão extenso
só penso abrir as portas,
respirar outro ar
antes que acabe o copo alto
de champanhe rasca
que me ofereço.
Quero sentir que mereço
cada refeição tomada
ganha por mim com esforço.
Não acredito num café da manhã
oferecido
a factura vem sempre atrás.

JANEIRO

José Gonzalez Collado

JANEIRO  

Do Natal ficou um arranjo
de azevinho e bolas coloridas
ainda não guardado.
No meio de tanta azáfama
não houve tempo,
não houve espaço.
Não tarda nada a criançada
revolverá os baús
procurando
roupa carnavalesca.
Comprar-se-á
nas catedrais do consumo
confetis e serpentinas.
De segunda rolarão as amêndoas
de chocolate, francesas, de licor
em caixinhas enfeitadas com amor.
As previsões anunciam  um Verão
quente,
a praia, a água de coco,
o guarda sol a lancheira,
as filas para estacionar,
horas a tostar.
E o Natal,
ah, o Natal,
o pinheiro, as fitas,
emoções de supetão,
o ciclo a completar-se.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

FALSA EXPECTATIVA


Jose Gonsalez Collado

FALSA EXPECTATIVA  

Aguardo-te sentada
na esplanada,
beberico o sumo de laranja
espremida na hora,
o trânsito é caótico,
a turba lança-se correndo
em direcção ao terminal do metro.
O empregado de mesa
olha de soslaio,
tanto tempo a ocupar o espaço
por um copo de laranjada.
Assumo ser lerda,
mais uma vez falhaste,
o compromisso de ir contigo
ver o filme  O QUARTO
fica para a semana...

PAISAGEM

Jose Gonsalez Collado
PAISAGEM  

Chegámos depressa aqui
a vida não correu, voou,
olhámos a incerteza do mundo,
do país,
a janela da sala
já não é uma janela aberta
é uma fresta por onde entra ar,
pouco,
é difícil respirar.
Lá fora, as folhas caem,
a água da intempérie
rompe as margens dos ribeiros.
Frio, chuva.
Dizem os noticiários
que a austeridade
é para continuar,
mandam os donos do mundo,
ditam os senhores de Bruxelas.
Enrodilhámo-nos nas mantas,
sentimos nos ossos,
o quente do crepitar da lareira.

NOITE DE INSÓNIA

Collado

NOITE DE INSÓNIA  

Quando o céu está límpido
e brilham mais as estrelas,
em noites de insónias,
debruço-me no varandim
do meu quarto,
tento perceber o firmamento.
Os olhos papudos, aguados,
alcançam a Estrela da Manhã,
o esplendor do seu brilho
e por qualquer milagre
que desconheço
entro no quarto e adormeço.

PATUSCO



PATUSCO  

Naquele dia de Primavera
longínquo,
um friozinho selvagem
atravessava os ossos.
Saímos cedo
para aproveitar a paisagem,
destino - Serra da Estrela,
criador de cães da mesma raça
em Seia.
Era uma bolinha de pêlo,
olhos vibrantes,
espevitado e mijão.
O nome foi-lhe destinado
na primeira impressão - Patusco.
Patusco havia de ser agora
e transformado em canzarrão,
forte, potente,
derretendo-se por umas festinhas
no dorso.
Morreu do coração
e saudade,
tinha os donos apenas aos fins de semana,
aninhando-se na morte
perdeu a ferocidade.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

AMIGOS PARA SEMPRE

José Gonzalez Collado

AMIGOS PARA SEMPRE  

Os cinco amigos,
na primeira quinta feira
de cada mês,
reúnem-se numa tasca
barulhenta, impessoal,
plantada na rua das Taipas.
A dona, a gorda Rosário
faz umas tripas de comer
e chorar por mais.
Sentam-se sempre
no mesmo canto,
insatisfeitos com a vida,
satisfeitos com as vitualhas.
Gabam-se a torto e a direito
das suas conquistas de machos
pecaminosos, ardilosos,
marcha tudo:
a sopeira, a florista,
a comissionista, a dentista.
É um poder carnal suado,
orgânico, obsceno,

mas no final, é tudo apenas virtual.

VALER A PENA

Collado

VALER A PENA  

Enquanto os dias nascerem
com brilho e reflexos no olhar.
Enquanto o penetrante luar
iluminar caminhos a andar.
Enquanto o pomar florir
e alguém colher os seus frutos
intensos e maduros.
Enquanto houver guardiões
das memórias do passado.
Enquanto as fogueiras aquecerem
os pés doridos
dos peregrinos de Santiago.
Enquanto alguém tremer
com a dor dos outros,
eu e tu acharemos

que vale a pena estar.

TERESA

Collado

TERESA  

Umas ruguinhas persistentes
à volta dos olhos grandes
riem contigo
gargalhadas espontâneas.
Está em idade de ter amigos,
muitos,
de todos os tamanhos e cores,
matulões, minhones,
coloridos, sentidos.
É normal, a idade não escolhe,
os erros ajudam a crescer.
Estranho é não te terem dito
que isto passa.
Mais tarde contá-los-às
pelos dedos da mão,
isto se não precisares deles
a sério.
Distraem-se, não te ouvem,
deixam de aparecer
e um belo dia apagam-te
do facebook e do telemóvel.
Não será invulgar
deixar de referir-te,

não lembrar-te, esquecer-te.

NO TEMPO DA MINHA AVÓ

Collado

NO TEMPO DA MINHA AVÓ

No tempo da minha avó
vestir-se era um acto heróico,
comecemos do princípio:
uns cuecões até ao joelho
de linho tecido em casa,
uma camisa até aos pés
cobrindo formas e desejos,
um corpete segurando as mamas
apertado por fios cruzando-se em ilhós
um saiote rodado,
uma saia de merino ou chita
conforme a ocasião,
uma blusa de manga comprida,
um lenço estampado
cobrindo os longos cabelos
encaracolados,
um chapéu de aba larga
protegendo do sol nas leiras,
ou chapéuzinho de dama
se fosse à missa primeira,
uns socos para a labuta
e umas meias de estopa,
para completar o trajo domingueiro
umas chinelas bordados
e meias de fino linho.
À ilharga uma bolsinha de pano
onde guardava o lenço e o rosário.
O dinheiro era guardado
entre os seios
ali ninguém chegava.
Um dia, no meu aniversário,
como por magia sai do seu decote
uma nota pequenina
estampando o Santo António.

Foi Natal, Páscoa, dia de S. João.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

COMPORTAMENTOS

José Gonzalez Collado

COMPORTAMENTOS  

Os trabalhadores,
ao fim da tarde,
preparando-se
para regressar a casa,
são diferentes.
Pela manhã,
levam um sorriso enviesado
é difícil agradar ao patrão
sempre preocupado.
Mais descontraídos
contam tostões
para ofertar duas rosas
às namoradas.
O bom humor dura mais,
sabe melhor a cerveja
a viagem de metro não cansa,
voa  a imaginação

para lá da paisagem.

VERTICALIDADE DA ALZIRA

José Gonzalez Collado

VERTICALIDADE DA ALZIRA  

Não tem intolerância
a qualquer alimento
nem aos morangos
nem ao chocolate.
Só presta atenção à sua vida
a dos outros
não lhe faz monta. 
Não insinua nada
quando fala
é de certezas confirmadas.
É mais de silêncios
que de palavras vazias.
Oferece-se sempre
para  iniciar
justas reivindicações.
É linda de morrer
para lá de qualquer espelho
ou água parada.
Ajoelhada
frente a este mundo conturbado
tem dificuldades em viver

com o seu parco ordenado.

SALVAÇÃO

José Gonzalez Collado

SALVAÇÃO  

Salvem-se os milhões,
salvem-se os donos dos milhões,
salve-se a engenharia financeira,
salve-se a bandeira dos donos
disto tudo.
Salve-a Europa madrasta
agastada a contar tostões,
salve-se a política da escravatura,
a falta de decência
o trabalho não dá pão suficiente.
Salve-se a soberba do poder,
a dureza da humilhação
infligida aos fracos.
Salve-se a moeda única
a sua força
o desemprego que causa
a estagnação da Europa,
a falência dos bancos
a dívida pública.
Foi para tal cenário, Europa,

que nos coligámos?

CAMA DE HOTEL

José Gonzalez Collado

CAMA DE HOTEL  

Nenhuma cama
onde dormia
enquanto viajava
me ficou na memória.
Frias, impessoais
sem dobras nos lençóis
nem manta quente
preferida.
Não era minha por direito,
outros dormiram nela.
Maquilharam-se ao espelho,
tiraram o suor no chuveiro,
espantaram medos,
espantaram desejos.
Deitaram-se no travesseiro
de um jeito ausente
pousando um dia
para se afastar no outro

sem penas, sem perdas.