sexta-feira, 28 de novembro de 2014

GRITOS

Luís Morgadinho
GRITOS

Ladram os cães
agarrando o osso,
com um ferro em brasa
deixam o ferrete
nas vítimas que estorvam
o percurso
na senda galopante do poder!
Espalham os restos
e riem-se
da esfrega animalesca
ditada pela fome!
Corneando afastam
os sarnentos,
apontando a sua inutilidade,
espremidos antes
hoje não servem para nada!
Só nos cresce o pranto,
a indiferença,
merecemos
o que nos acontece,
sem reacções, gememos,
enquanto botas ruidosas
passam por cima
dos nossos cadáveres!

FAMÍLIA

Collado
FAMÍLIA  

Essa  realidade doce e azeda,
encontros nas festas,
solidariedade nas doenças,
participação marcada nos funerais,
odiando-se no dia a dia!
Ah a sobrinha baixinha
de nariz empertigado
nascendo para cantadeira
chegou a Secretária de Estado!
O primo esguio
com ar de retardado
acaba o doutoramento
louvado e distinguido!
Que excêntrica situação!
A cunhada Amélia,
uma pelintra,
conduz coitada,
um Volvo em segunda mão!
A irmã Adriana
já revelha,
pinta os lábios de encarnado
e oferece-se no Facebook!
É esta a estranha vida em família
uma constante contradição
entre o ser e o dever,
entre o querer e o poder,
entre o amar e o odiar!

CONVITE

Collado
CONVITE  

Senta-te aqui, comigo,
rodeados de livros,
ungimo-nos
com incenso e mirra,
ganhámos a eternidade!

DE OLHOS FECHADOS

António Porto
DE OLHOS FECHADOS  

Fecho os olhos,
abro a alma
para um príncipe
regressado das Índias,
montado num elefante
transportando as sedas
que docemente
me envolverão!
Desço a vereda da serra,
o rio soluça no vale,
os remos do barco azul
cortam a água,
o velho sacerdote
com ungentos
esfregados no nosso colo,
abençoa esta união!
Serei esta noite deusa,
amante,
corredora, dançarina,
por entre as colunas do palácio
outrora de marajás!
Serei feliz
banhando-me contigo
na tina redonda,
envolvendo-nos depois
na toalha azul do teu olhar!

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

PASSADO

T. Sarrais Cruxent
PASSADO  

A menina loirinha,
olhos desconfiados,
tão tímida,
alheada quase sempre
do rame rame
que a circundava!
Cada fim de tarde
era especial:
um passeio num pinhal
frente à casa!
Sonhava tanto
ficando suspensa
entre o sonho e a decência!
Hoje, mera sombra,
viu que sonhou errado,
os sonhos são um estorvão,
não cabem na realidade!

ESTE TEMPO SINISTRO

Sara Vieira
ESTE TEMPO SINISTRO

Jovens desejam ser jiadistas,
ser assassinos
em nome de uma fé,
os licenciados emigram,
sem norte e sem rumo
num país que não os quer!
Os doentes pedem
encarecidamente tratamento,
alguém morre
com a sensação
de não ser livre!
Os velhos anseiam o céu,
sentem-se a mais
neste rectângulo em agonia
que os abandonou!
Os acomodados,
de cabeça baixa
agradecem
côdea de pão
caída  ainda no seu prato!

MARINHEIRO

Rosa Lapinha
MARINHEIRO

Marinheiro sem porto
em breve deixarei o navio,
irei por montes e vales
conhecer outras marés,
percorrer trilhos diferentes,
contar estrelas,
cuidar de mim!
Nada do dia a dia
me interessa,
quero colher cogumelos
selvagens,
comê-los devagar
com ovos de codorniz!
Excluirei amigos, amigas,
do Facebook,
conversas formatadas,
perguntas disparatadas ,
conclusões precipitadas!
Neste silêncio consentido,
há algo de novo,
encontrei a alma!

NATAL

José Luis Ceña Ruiz

NATAL

Era uma vez o Natal,
uma família singular:
S. José, a Virgem Maria,
e o Menino,
nascido numa gruta,
aquecido pelas palhas
duma manjedoura!
Fugitivos,
abrigaram-se
num curral,
Maria pariu ali
o Salvador do Mundo!
Em Lampedusa
não há Natal,
os meninos não nascem,
morrem em barcos a abarrotar!
Não há Europa,
não há gente
que os queira albergar!
Abandonados por todos,
são enterrados no mar!
Fogem da guerra,
do genocídio,
de governos autoritários,
da morte letal!
Em Lampedusa
riscam-nos da História,
acidentes na memória
de quem não os quer recordar!
Ah Europa decrépita,
sem Marselhesa,
sem Revolução Francesa,
resta-te reescrever a História,
acolher fugitivos,
fazer dos seus filhos,
nossos filhos,
R E N A S C E R!

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

ACTRIZ

Cinta Agell
ACTRIZ  

Prestes a entrar em palco,
as pernas tremem,
afina-se a voz:
RRRRRR  RRRRRR PRRRRR,
abre-se a cortina,
os holofotes iluminam
um rosto ainda cansado!
A cena está bem estudada,
o monólogo é intenso,
a velha senhora, na cochia,
puxa o lenço,
limpa uma lágrima furtiva!
Os olhos famintos da plateia
querem mais,
mais acção, mais emoção,
mais sensações, mais poesia,
mais magia,
um saco cheio de girassóis,
distribuídos, de graça,
pela actriz
comunicando com o público!
Um sortilégio raro
toca fundo a alma,
nasce Páscoa, amêndoas
e fogaça,
a actriz em transe
arranca da garganta
mensagens de vida,
há tempos silenciadas!
Renasce a esperança
no calendário do nada,
irrompem palmas vibrantes,
a actriz agradecida,
vem três vezes à boca da cena,
o sonho renasce cada dia,
no quentinho do teatro,
limpando desilusões e mágoas!

SELECÇÃO NACIONAL

Marina Fátima
SELECÇÃO NACIONAL  

De verde e vermelho vestidos,
o peito ufano de vento,  
perfilados com respeito,
cantam a jeito
o hino nacional
“ heróis do mar ...”!
Nós acreditámos
e com eles vamos,
pernas audazes
atrás da bola
rebolando impante
até à baliza adversária!
O meio campo aguenta-se,
os centrais conduzem o jogo,
com perícia,
um jogador atira a bola,
o artilheiro faz o golo!
Golo! G o o o lo!
A assistência vibra,
levanta-se, grita,
desfralda a bandeira rubra!
É rápido o contra ataque,
o nosso guarda redes com presença
afasta a bola com os punhos,
caramba, o perigo passou!
Começa tudo de novo,
Ronaldo aproveita
uma distracção adversária,
pernas de gazela a galgar o relvado,
de finta em finta,
de bicicleta faz o segundo golo!
G O O O LO de PORTUGAL!
Esquece-se a crise,
a falta de dinheiro,
o emprego a prazo!
Iça-se o orgulho nacional!
Aguenta Manel,
a vida e a bola não rebola,
queremos apenas
o soar do apito final 

TELEFONE

Collado
TELEFONE  

Liga-me,
mesmo sem nada para falar,
diz só
que te lembraste de mim
neste fim de dia caótico!
Esperaste o fim do trabalho,
esqueceste o cansaço,
foi em mim que pensaste
como algo tangível
no teu castelo encantado!

INTERREGNO

Marina Cocós
INTERREGNO  

Entraste na minha casa
com um sorriso,
umas flores na mão,
coloquei-as na jarra,
dançamos os dois
ao som dos Beatles
passando
numa estação de rádio
revivalista!
De onde veio a faca
que espetaste
do lado direito
do meu coração?
Agora que te foste
não interessam mais
as marcas deixadas,
as noites obscuras,
os almoços silenciados
por rumores de partida!
Antagónicos que éramos
acabámos caídos
cada um para seu lado!
O dia de amanhã é outro,
fresco e límpido
raspando as nódoas
que permaneceram!