terça-feira, 26 de novembro de 2019

CARTAS


Marco Santos
CARTAS 

Guardadas numa arca,
pirosas, coloridas,
laços, corações,
sol, mar e lua.
Muitas juras de amor,
tanto bem-querer,
com dias mágicos
em que chegávamos nós
e as ondas a bater na areia.
Celebravam datas,
dias de semana especiais,
eram repositório de desejos
e terminavam com beijos.
Transformaram-se
em memórias,
embrulhadas em pó,
com cruzamentos
e rectas fechadas,
com gente que já partiu
e outra que ainda resiste.
Letras desbotadas
de leitura difícil,
mesmo assim
não as quis partilhar.
Fiz  obras em casa, queimei-as.

AU REVOIR

Mary Carmen Calviño
AU REVOIR 

Admiro a tua calma gélida,
a tua maquilhagem marcada,
o rastreio que fazes das emoções,
o navio que deixas partir,
levando-me a mim que te amo.
Não tens coração,
nuvens de rugas sulcam-te o rosto,
a rotina suga-te a vida que é tua.
Juntos planeámos sonhos,
sair para um país que nos valorizasse.
Tantos anos de estudo,
tanta luta para vencer obstáculos
e só barreiras  é o que nos dão.
Nunca fizémos as malas,
de mim ficou uma fotografia,
no teu quarto, um adeus,
quem sabe uma lágrima.

IN MEMORIA


IN MEMORIA
de FIRMINO MOREIRA

Biologicamente alto,
aprumado,
acordado para o mundo
cofiando o vaidoso bigode,
sem medo da exposição
aventurou-se nos mistérios
da pintura, da poesia.
Pertencia onde estava gente,
de lenço colorido ao pescoço
bajulando as damas à antiga
com vénias e ósculos
nas bochechas.
Não iremos mais pelo Norte fora
perdidos nos matagais e
estradas florestais
para comer cabrito à montanhesa,
beber um copo de tinto caseiro,
saborear pudim escorrendo caramelo.
Neste poema de saudade, lembranças,
de pessoas boas e doces que nos
atravessaram,
do que se viveu,
das intenções para depois,
 das certezas, das hesitações,
da leveza que queríamos o ar
respirado pelas manhãs
tendo um livro na mão.
Da música ouvida e tocada
num piano cheio de histórias
e dores.
Partiu neste Outono triste
como um meteorito
galgando terra e céu
sem nos dizer Adeus.

Maria Olinda Sol

terça-feira, 19 de novembro de 2019

METRO

Dina de Souza
METRO

Hoje o metro não atravessou
a ponte de D. Luís.
Acidente, alguém se atirou ao rio?
Vá lá saber-se
o que passa na cabeça
das gentes desiludidas.
Os habituais passageiros
perdem a compostura,
barafustam pelo atraso.
Não há o frenesim
entra e sai,
a bisbilhotice matinal
do mulherio conhecido.
Abriram-se as portas,
descem os clientes
atravessando apressados
a ponte a pé.
Senhores passageiros
na próxima viagem
o tráfego estará normalizado.
Quero lá saber,
por hora pretendo sentar-me,
tomar meia de leite,
uma torrada barrada
com muita manteiga.

A LEMBRAR

Estrela Rua
A LEMBRAR

O Verão terminou há pouco
quente e seco
eis-nos no Outono
chuvoso e frio.
As tardes de Verão de outrora
eram longas e ensonadas,
as férias grandes, ensolaradas,
iguais a muitas outras
no doce remanso das raízes.
Íamos em magotes
à fruta da avó,
subíamos as árvores como esquilos
e comíamos com sofreguidão
sentados nos ramos.
O relógio da Igreja marcava
as horas atempadamente,
a mãe Ana preparava o repasto,
o pai Joaquim cofiava o bigode
para que a sopa quente
não o maculasse.
Uma paz caseira
cortada pela vozearia,
era quem mais se chegava
às iscas de fígado.
O futuro estava
ao virar da freguesia,
o Porto era perto
assim esperávamos.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

DIA DE OUTONO

Nunes Amaral
DIA DE OUTONO

Um ventinho frio
varre o tampo da mesa,
 as mãos geladas,
o livro que leio
esfolheia sozinho,
onde estás sol
enquanto as janelas
e as portadas
permanecem fechadas
neste dia escuro,
molhado.
Portas com história,
aldravas e batentes
abrem e fecham
só para dar guarida
aos moradores tiritando.
Nas varandas de ferro forjado
ninguém rega os vasos.
Eu procuro verbos
para conjugar
um Outono triste.

SEMANA DE CHUVA

Irene Gomes
SEMANA DE CHUVA

Era o vento agreste
soprando na tarde sentada.
O mundo deserto
espreitando de soslaio
as ruas molhadas.
As gaivotas fora de si
voando baixo
em redor das mesas
sem migalhas.
Era a tranquilidade
de um dia de chuva
com muitos apara águas
descendo as calçadas.
A viúva Zézinha
vestida a capa
há muito guardada
saía à rua,
faltava-lhe o leite
e a carcaça tostada.
Um pequeno almoço trivial
e o gato esperavam-na.
Era a casa gritada
com fantasmas pendurados,
o medo da noite,
o soalho gastado.
O coração ansioso,
o cavaleiro inventado
tardando a chegada.
A sombra do Outono
em sobretudo enrolada
trazendo as castanhas,
a água pé aguardadas.

CENA OUTONAL

José Luis Busto
CENA OUTONAL

Um: velhos sentados no jardim
jogando cartas afincadamente.
Dois: um homem e uma mulher
mais ausentes
num banco distanciado,
de mãos dadas
contando as gaivotas  quietas
que ali pousaram.
Três: as árvores largando a folhagem
preguiçosamente,
em dança acrobática,
enquanto os passantes
vivem este Outono
compassadamente
com berlindes coloridos nos olhos.
Quatro: despeço-me da tarde,
o dia foi triste,
com chuva miudinha,
o nevoeiro agreste.
Ausente dos afazeres,
por segundos indiferente,
foco-me na chama
do aquecedor do restaurante.
Cinco: a cidade velha vai desaparecendo,
é assustador tanto novo
no meu Porto centenário.
O café está quente,
a nata estaladiça,
por breves momentos
nada mais me assiste
senão a alquimia
da degustação perfeita.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

DIA DE FINADOS

Fernando Veloso
DIA DE FINADOS  

Hoje estou a pensar
numa fila de gente
que me ofereceu amêndoas,
fatias de pão-de-ló,
me pegou na mão
levando-me para a escola,
me penteou o cabelo,
embalou no colo.
Já sonhavam comigo
antes mesmo de eu nascer:
os meus avós, tios,
todos, quase todos
partiram.
Na casa de família
que ainda existe,
mora um primo meu,
deita-se no quarto
onde nasci eu
num parto longo e de dor.
O jardim lateral
em que a minha avó
cuidava dos jarros
esmagados
que saravam as queimaduras.
Tanta festa, ajuntamentos,
baptizados, casamentos,
ralhos, faltas de dinheiro,
mentiras, verdades cruzadas,
o padre Vigário abençoando
até a algazarra da criançada.
Tudo pertence ao passado,
restou para mim a saudade,
e, uma garrafa de cristal
onde a minha avó Olinda
guardava o vinho do Porto.