terça-feira, 16 de julho de 2019

QUE TANSAS

Filomena Fonseca
QUE TANSAS

Tansa sou eu
tansos somos todos,
tanto quanto me lembro
quatro gerações
a pensar que os outros
são melhores que nós,
vergastados por imposições,
falta de soluções,
eis-nos bois mansos
sem primeira vida
e muito menos segunda,
as oportunidades
vendidas ao desbarato
a um nepotismo egocêntrico,
cruel, falacioso, ultrapassado,
valham-nos os livros,
valha-nos a sabedoria,
o conhecimento não nos tiram
e podemos sempre
atirar-lho à cara.
Pensam a toda a hora
que viemos do nada
e nada merecemos,
mas falámos bem o Português,
arranhámos Inglês e Francês,
não comprámos cursos,
vivemos com dignidade,
vivemos sem medo
de perdemos o poder, os cargos.

CASA

Joan Miró
CASA

Uma casa pequena,
onde morávamos todos,
concha aconchegando
o que faltava.
Casa cheia de perdões
e vontades de ir mais além
rasgando pendões, aldrabas.
A década da meninice
foi um desenho de Miró
numa tela acinzentada.

terça-feira, 9 de julho de 2019

IN MEMORIAN

Fernanda das Neves
IN MEMORIAN

Da casa velha
restam as cortinas esfarrapadas,
as persianas batendo
contra a parede descascada.
O gato vadio
entrando à socapa
esperando o último bocado.
Sujidade, humidade,
as almas vagueando
por cima do sobrado.
Folhas voando
à volta do telhado,
a bengala do avó
perdida no telheiro.
Três camadas de gente
sentaram-se na mesa quadrada,
nas festas grandes e nas desgraças,
a mãe gritando: levem os restos.
Tudo é vão para além do nosso tempo
que é curto,
digno de ser bem aproveitado.

PORTO ASSOBERBADO

Jorge Vieira
PORTO ASSOBERBADO 

Dizem que é Verão,
 a luz é frouxa,
o ar pesado.
O céu ponteado de nuvens,
o vento forte.
Os turistas correm a cidade
de lés a lés,
o GPS numa mão,
mapa na outra,
fotografam até a alma
dos tripeiros enjeitados.
Tantos linguajares
dizendo à urbe granítica:
bela, belíssima.
O sossego é uma pausa
no frenesim de descobrir
os mistérios do Porto Velho.
Saltam as francesinhas no molho
picante, carago,
a cerveja fresca
risca a garganta,
alivia o pigarro.
Ao cair do dia o Lúcio cansado
de tanto carregar cimento,
aplicar tijolos, aplainar paredes,
pergunta: porque me rejeita a cidade?

terça-feira, 2 de julho de 2019

FIM DE SEMANA COM S. JOÃO DENTRO

Júlia Ramalho
FIM DE SEMANA COM S. JOÃO DENTRO

Preparou-se tudo,
à noite assam-se
as sardinhas,
faz-se o churrasco
de carnes variadas.
No silêncio opaco
do fim de tarde
a azáfama era grande.
A pequenez da casa
arrastou a malta
até ao quintal
todas participantes
no solsticio de verão.
Frigiam no carvão
as gordas sardinhas,
a chouriça, a alcatra,
as cebolas, os pimentos.
Circulavam malgas
de vinho tinto,
broa de milho, azeitonas.
A concertina velha
do meu avô,
há muito pendurada,
caiu em mãos
de quem tocava
umas modinhas.
Celebrou-se a noite inteira
com brejeirice,
alho porro, manjerico,
mais um S. João no Porto.

UMA BIBLIOTECA ESPECIAL

COLLADO
UMA BIBLIOTECA ESPECIAL

Era uma professora primária
em época salazarista,
muito trabalho, muitas crianças,
uma ridicularia de salário,
os tostões contados,
a tristeza de não ser recompensada.
Naquela aldeia perdida
sem permissão para sonhar,
sacudiu o marasmo
e criou uma biblioteca pública.
Os primeiros livros
consegui-os de um poeta,
inconsequente como todos os poetas,
expurgou-se do que mais gostava.
Mas quem queria ler poesia?
Pelo final do ano escolar
a surpresa foi geral,
cada criança recitou um poema,
elaborado por si na turma.
A biblioteca cresceu,
a professora saíu,
os alunos agora homens,
são por certo criaturas melhores.