terça-feira, 28 de maio de 2019

TARDE ESTIVAL

Jose Gonsalez Collado

TARDE ESTIVAL

Tarde quente
com cheiro a estio,
a rola pousa
devagar
no ramo mais alto
da figueira,
depenica sofregamente
os pingos de mel
não tendo onde limpar
o bico.
O arrulhar sai,
enche as courelas
roçando o silêncio
da quentura.
Nos degraus da entrada
late o cachorro
catando a pulga.
As hidranjas secas
prontas para um arranjo,
haja tempo.
Usufruo do fim da tarde,
um fresco impõe-se
refrescando do corpo e alma.
É uma festa
esta mesa com chá de menta
e uns biscoitos
de chocolate e laranja.
No centro de tudo
a saudade
dum tempo que é pouco meu,
as rolas continuam seu bailado
no terreiro à minha frente.

UM DIA NA VIDA DE UM CIDADÃO COMUM

Jose Gonsalez Collado

UM DIA NA VIDA DE UM CIDADÃO COMUM

Decidiu sentar-se,
não fazer a habitual caminhada,
tomar café,
contar as gaivotas
que bordejavam o cais.
Olhar o relógio gasto,
ver sem olhar os rostos
apressados
querendo nada.
Imaginar as muralhas fernandinas
intactas
apertando a cidade pequena,
medieval, fechada.
O rio leva sempre
a algum lugar
de lonjura e liberdade.
As palavras baralham-se
na cabeça atordoada,
o caderno aberto
branco e vazio
na mesa de ferro fundido.
Não vê mais nada,
o poema toma forma
canta outra vez a urbe
escura e quente.

terça-feira, 21 de maio de 2019

MAIO

Jose Gonsalez Collado

MAIO

Escondo-me
na sombra da árvore
evitando o sol,
uma soneira
invade o corpo sem sina,
as mãos abrem-se
na frescura das folhas
dobradas.
A casa ao fundo
meio abandonada,
a brisa sopra,
os vidros brilham
onde tanto olhar passou
a espreitar.
Um amargor na língua,
saudades de um tempo
mal vivido,
de fugas nunca concretizadas.
Ah meninice
ainda dentro de mim
com a mãe chamando
para o almoço:
são sardinhas assadas.
Respiro devagar,
encho os vazios
circundantes e frios,
as papoilas acenam,
vermelhas,
eu bocejo:
que vontade de partir.

CIDADE

Jose Gonsalez Collado
CIDADE

O vento já não sopra,
o cinzento da cidade
dissipa-se,
correm os passos na viela,
cheira a gasolina.
O barco apita
na agitação do rio.
A vizinha antiga
pendurada na varanda
manda farpas
a acirrar a moçoila
mais nova e linda que ela.
O homem do talho
leva no ombro
uma carcaça de cordeiro,
arrasta as botas
no gasto paralelo.
Os gatos ariscos
arriscam o petisco
dependurado na mesa
do turista.
Um senhor de bigodes
retorcidos,
alheio a tudo,
dorme a soneca
encostado a um muro.
A namorada aflita
chora baixinho
o amor que terminou
entre o prato de tremoços
e a cerveja fresca.
Toda a gente estonteada
com quem nos visita,
dedos em riste
a traçar o itinerário.
E o nosso amanhã?
teremos amanhã nesta velha
Europa gasta?

terça-feira, 14 de maio de 2019

INFÂNCIA


Constância Nery
INFÂNCIA 

Da infância
guardo os dias claros,
a presença de Deus
tão perto,
dentro da capela do lugar.
As crendices
contadas nas desfolhadas,
o medo da noite
com ecos de lobisomens
e gritos de almas penadas.
A janela aberta
sobre os montes
a abarrotar de árvores.
As estrelas
sob um céu imenso
inundando de luz a mansarda.
Não imaginava
as perfidias dos outros
e jogava cartas
na mesa de granito.
Rabiscava
estados de alma
bebendo ainda quente
o chá de limão.
Os segredos guardava-os
num silêncio lapidar
sonhando com a queda
da estrela polar
no meu colo dobrado.

VIDA


Collado
VIDA

Colocam-nos um nome
ao nascer
nome que não se encaixa
e de que não sabemos a história.
Registam-nos
com os apelidos da família
que se agarram,
se colam como letreiro
em cobertura de autocarro.
Pensam para nós destinos,
orientam-nos na vida
no leme dos seus sonhos.
Não nos querem actores,
músicos ou malabaristas.
Põe-nos no altar mais alto,
somos santos à força
e vetam-nos os pecados.
Dão-nos vagas esperanças
de uma carreira, vida boa,
não falam de percalços,
de desgostos e lágrimas.
Frisam o céu
como corolário perfeito,
depois da morte imperfeita
o resumo de nós
em três linhas mal alinhavadas.
Memórias livres de fantasmas,
educadamente
chamam-nos boas pessoas.
Flores só no aniversário
presas em ramos, laçarotes
com forma e garrote
para que durem, durem,
tal qual a eternidade.
O nosso pousio é alegre e triste
conforme o ângulo
em que voam os pássaros.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

DESPREOCUPAÇÃO

Collado
DESPREOCUPAÇÃO   

Sem pressas,
já corri muito,
avançando obstáculos,
pernas bambas,
fraquejando e aguentando.
Agora, calma,
quero sentar-me,
sem pressas,
tomar café,
ninguém me incomode.
Silêncio
é o que eu peço,
abstrair-me
enquanto o sol brilha
e o dia sabe a morangos.
As árvores abrigam
o barulhento passaredo,
sinfónica aos meus ouvidos
contemplando os Poveiros.

PINHAL DE LEIRIA – FIM

Collado
PINHAL DE LEIRIA – FIM  

O vento em fúria
levanta as faúlhas,
as chamas adensam-se
propagando o incêndio
pelo matagal.
A esperança desvanece-se,
impossível salvar o pinhal
que levou os primeiros navios
na saga impante
de chegar a novos mundos.
O ruído do fogo poderoso
chega aos céus
Padre Nosso, Avé Maria
livrai-nos de todo o mal.
Braços caídos, desolação,
as forças vivas não salvam
as árvores e arbustos
e os animais apavorados fogem
antes de ser imolados.
Olhos rasos de água,
rostos transtornados,
a História perde-se
num quente dia de Verão.