terça-feira, 29 de outubro de 2019

TU

Victor Silva Barros

TU  

Hoje não vou falar de ti
não precisas de estar aqui
para eu te lembrar.
Hoje não quero abraços,
dançar a compasso
uma valsa sem fim.
Hoje não quero beber martinis
com duas azeitonas,
comer tostas de centeio
barradas a queijo da Serra.
Não vou fazer mais um poema
com cotovias dentro
cantando uma área de Verdi.
Não vou descodificar
o teu sentir codificado,
fechado num cofre de cobre.
Vou soltar um balão
de ais sentidos
que caia numa vinha madura
com muitos copos à mistura.

FOTÓGRAFO


Porfírio Alves Pires
FOTÓGRAFO  

Virou o meu pai um fotógrafo
no dia em que chegou a casa
com máquina e uns rolos na mão.
Procurava a melhor luz,
um golpe de visão
e fotografava a família
nas lembradas ocasiões.
Em dias de Comunhão,
ajuntamentos de irmãos,
festividades da freguesia,
Páscoa e Natal.
Que grande consumição
os rolos e a sua revelação,
só no Porto é que o faziam
para nossa aflição
Sentado no murete da entrada
assobiava, a catraiada corria
e em transe revia a vida
naquele papel.
Um luxo na altura
guardado até novas ordens
na gaveta do guarda fatos
do quarto da minha mãe.
Hoje são recordações,
olha a roupa dos anos setenta,
os cabelos compridos,
os óculos de tartaruga,
as calças à boca de sino
e muita, muita emoção.
A mãe de permanente fechada,
o pai de bigodaça farta
e chapéu cobrindo a careca.
O pombal no alto do jardim
repleto de pombas,
a bugambilia florida.
A avó Olinda rezando com devoção,
aceitando todos os castigos
da sua Católica Religião.
Hoje a casa está vazia
não restando sequer os retratos
ali tirados,
só um silêncio, frio e pesado.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

FOLHA A4

Filomena Fonseca
FOLHA A4  

A mão desliza
pela folha A4.
Acomodam-se os dedos
à caneta,
a linguagem à escrita.
Fervilha a cabeça
na ânsia do encontro,
marcarei no poema,
um fim de tarde seco,
uma sangria,
uma tarte de gengibre,
e, presunto de Parma.
O bar é discreto
sobre a praia.
Depois, logo se verá,
se o dia se torna claro
ou igual a todos os outros
de porta aberta
a uma agitada semana.

INDO AO PASSADO


Alberto d' Assumpção
INDO AO PASSADO  

Aberta uma brecha nas memórias
a alma cobre-se com uma manta
de mar calmo.
Ah a preparação para a primeira
comunhão, em casa de Mestra
escolhida pelo vigário da freguesia,
a hóstia que não podia ser mastigada,
a vela branca na mão.
A procissão do Corpo de Deus
com o pálio a cobrir o  Senhor Exposto,
as beatas atrás, de véu na cabeça
rezando o terço por mor dos seus
pecados, actuais e vindouros
A velha escola primária
na casa da D. Virgínia,
onde a professora primária
nova e deslocada, ensinava
os rios e caminhos de ferro
à chapada.
Que cruel era a matança do porco,
os grunhidos do pobre animal
toda a santa semana
castigavam as cabeças da criançada.
As primeiras saias mini
nos corpos roliços das moçoilas,
credo em cruz, a escandaleira.
Meninas de famílias consideradas
querem agora ser rameiras.
As mulheres acomodadas
à vida de servidão,
limpam o ranho do nariz ao pimpolho,
descansam as pernas fatigadas.
À noite pela janela aberta
entram os odores das flores do jardim,
sentada na cama entre almofadas
abro o caderno de linhas
e registo as memórias num poema.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

OUTONO

Mário Couto
OUTONO

Outono, no Porto granítico,
o céu enevoado e cinza,
dia sim, dia não.
Os turistas aos magotes
em grupos enfileirados
guiados por rapazes e raparigas
alguns até cantam o fado.
As mulheres entram apressadas
em ourivesarias antigas
e compram jóias em filigrana.
Uns param nas calçadas
e tentam interpretar
os desenhos calcetados.
À tarde quentura,
à noite sopra um vento do rio,
põem as damas uma echarpe
antes do jantar na esplanada.
O Porto empurrado
por estes pilares inesperados
fica lavado graças a eles.

A SALA DA AVÓ OLINDA

Nunes Amaral
A SALA DA AVÓ OLINDA

A sala de jantar
era cheia de gavetas:
a mesa gigante,
(a família era enorme)
tinha 4 gavetas
nas laterais,
encontravam-se sempre
algumas fotografias
de três gerações,
em poses estudadas,
os cabelos delambidos,
os sapatos lustrosos.
A cómoda de castanho,
repleta de gavetas
onde se guardavam as roupas,
as gravatas, as meias
de seda das tias,
os xailes de merino,
os lenços bordados a ponto cheio.
Por cima o oratório
com o medonho senhor dos Passos
de roxo e rosto sofrido.
Nas paredes pequenas prateleiras
com pequenas gavetas,
onde se colocavam as medalhas
ganhas em competições da Tuna.
A arca de Noé, cheia como um ovo,
era um repositório
de roupas de cama,
vinho do Porto ofertado
e guardado a sete chaves,
documentos, facturas
cartas e muitos postais.
Nós, os da nova geração,
perspicazes e à frente
deste pensamento corriqueiro
e provinciano,
saído da Morgadinha dos Canaviais,
porém gostávamos
da mesa cheia de gente,
das travessas cheias de comida,
das palavras gritadas,
das gargalhadas, do calor.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

POEMA

Victor Silva Barros

POEMA 1

Cada casa suas histórias
penduradas nas memórias.
Fechadas com a morte
continuam vivas
enquanto duram os que
a habitaram.
Depois ficam os fantasmas
a espreitar as novas vidas
e felizes se forem
melhores que as suas.

POEMA 2

Subo a escadaria,
cansada,
antes de entrar em casa.
Até quando?
Nada me impede,
nem gente, nem bicho.
Construída num alto
permite um melhor respirar.
Apenas isso,
pois o resto é solidão.

POEMA 3

Queria a Lua
e não  gente a caminhar
em vez de pensar,
um poema contigo dentro
e uma cadeira para descansar.

POEMA 4

Uma constatação:
apesar de tudo
a vida é bela,
vale muito a pena,
alguém precisa de mim.

POEMA 5

Inédito:
um triste americano,
alto e robusto como
um carvalho do Norte,
sentado a uma mesa,
come uma francesinha
bebendo leite.

terça-feira, 1 de outubro de 2019

PENSANDO


Maria Xésus Diaz
PENSANDO  

Paremos entre o muro a viela
stop
que o som da rádio
é maior que o do cantor de rua.
Meçamos até onde vai
o nosso querer
de água gaseificada de Marte,
fresca, com rodela de maçã.
Pensámos alcançar a lua,
bastou-nos o luar brilhante
a entrar pela janela
da mansarda opaca.
Sem contar, hoje,
a floreira da esquina
acordou com dúzias de tulipas
de todas as cores do arco-íris.
Ai amor vertiginoso
que suga até o olhar
e cai sem pensar
no boeiro da rua.
Dormes e eu sustenho a respiração
não quero acordar-te os sonhos,
nem que tenhas pesadelos.
Ah mar no horizonte do olhar,
liquido e majestoso,
enchendo de bruma, a praia,
embalando os fins de tarde
enquanto se toma um café
na esplanada de sempre.

HUMANOS

Porfírio Alves Pires

HUMANOS  

Os que opinam e os silenciosos,
os que criticam e os de boca fechada,
os que se acham os melhores,
os que desprezam oportunidades,
os casados e os solteiros,
os que vivem a vida e os sentados,
os escorreitos e os aleijados,
os portugueses e os indianos,
todos querem colo e ser embalados.