quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

GAIVOTAS NA CIDADE


Avelino Rocha
GAIVOTAS  NA CIDADE

A gaivota está à porta
pendurada no seu pio fino
de ave líquida e salgada.
Traz nas penas sedosas,
brancas, aguadas,
o perfil feudal da cidade.
Na cinza do duro granito
a asa clara
é um traço forte
na tela do pintor da cidade.
Revolteiam procurando
a comida que escasseia.
Espantaram os vendedores de rua,
apregoando ao lado delas
ganhavam no fim, os restos,
limpos os cestos no fim da jornada.
Voavam ao lado de lenços
coloridos, aventais bordados,
ginga de rins, pernas torneadas.
Com o expulsar de gentes
do casco velho e agora  renovado,
as gaivotas tristes meio atormentadas
vasculham os contentores mal fechados.
Traçam circulos quadrados
voam baixo
não conhecem já a cidade
no seu perfil globalizado.

PENSANDO


Collado
PENSANDO

Incompreensível é o universo
a vida rompendo
entre a calmaria e o embate sísmico.
Céu, terra, a dividir-se
os seres fruindo no meio da lama.
Todos fazendo parte
deste mistério que é a Terra.
De protagonistas
tornam-se  espectadores,
amorfos não traçam metas.

SIMÃO


Collado
SIMÃO

Todos os dias
comete os mesmos pecados,
logo que se levanta
um copo de vinho branco,  
fresco e doce,
fatias de bacon besuntadas,
torradas de broa de milho,
azeitonas temperadas.
Não suporta as saudades
de não ter saudades de nada,
estendido, entediado,
na rede de sólida, solidão.
Estende as pernas no lajedo,
as moscas mordem-lhe as canelas,
a noite não chega, o sono não vem,
 o corpo encolhe-se cansado.
O centro do hemisfério cerebral
funciona intermitentemente,
queria apenas ser ele
numa casa branca com pombal ao lado.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

UMA TARDE ENCANTADA

Silvana Violante

UMA TARDE ENCANTADA

Elisa
à porta do teatro de S. João
questiona
por onde começar.
Rodar em cima dos tacões
no átrio
observando os cartazes
anunciando novas fitas,
comer o chocolate de avelãs,
pavonear-se por entre os cinéfilos.
Até as luzes se apagaram
era gastar tempo.
Que chatice a publicidade
antes do ecrã se encher
com a vibrante história
de filme de sucesso.
Jovens amantes lindos,
tudo para serem felizes,
mas a vida, oh a vida
com golpes baixos
destrói as ilusões
e mata a mocinha.
Interrompida a sôfrega vida,
abre-se a carteira à socapa,
limpam-se as lágrimas,
soluça-se de boca cerrada.
Foi curta a existência
para tão grande amor.
Lavou, a fita, porém, a alma,
a emoção ao rubro,
sentada no banco zonzo
do trólei,
a caminho de Gaia,
a Elisa trinca o último pedaço
do chocolate de avelãs,
conforta-se o corpo,
a noite está triste.

VOLÚPIA


Collado
VOLÚPIA

O momento é este
secreto,
uma sala vazia,
a dança dos corpos,
lentos a esticar as vértebras
escorrendo suor
húmido, pegajoso.
O ímpeto do toque
é um choque,
a coreografia de supetão,
passa à acção,
a madrugada tem história
no encontro
de cada fio de cabelo,
no colar das bocas.
Lá fora um vagabundo
de garrafa na mão
canta à lua
a Marselhesa perdida.
Os braços pendem salgados,
calam-se as palavras
não interessa o mundo.

DIA 13 de Janeiro de 1917

José Rasquinho

DIA 13 de Janeiro de 1917

O chão molhado escorre
por entre latas vazias
despejadas na rua
ao acaso.
Uma criança loira barafusta
ansiando em vão um chocolate
pendurada numa loja da esquina.
A estudante de capa e negro a rigor
espera o namorado que tarda.
Um soldado pendurado
na janela do autocarro
diz adeus à saudade.
Um aprendiz de poeta
 desconfiado,
ensaia numa ponta de jornal
o último poema.
Um homem e uma mulher
olham-se simplesmente.
Um sem abrigo enferrujado
destampa o contentor
querendo no meio do lixo
encontrar a  Sharon Stone.
A cidade quieta não vibra.
Os turistas desorientados
procuram na Net os restaurantes
de Estrela Michelin, recomendados. 

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

UM DIA ESTRANHO DE INVERNO

Radio Zürich
UM DIA ESTRANHO DE INVERNO

O sol está a pique,
gelatinoso
sobre o guarda-sol
da esplanada.
Caras fechadas
embrenham-se nos menus,
os dedos trabalham
mensagens abreviadas.
Um sem abrigo
sentado no jardim do largo
levanta-se em desequilíbrio
contando as pedras da calçada.
Uma mulher de idade indefinida
faz-se muro
dividindo o café da realidade.
A cadeira de realizador vacila,
a câmara foca
a jovem modelo de beleza
exótica
apresentando a colecção da Primavera.
Um turista sardento,
tenta levar na mochila
raios de sol para a sua casa fria.

DIVAGAÇÃO


Victor Silva Barros
DIVAGAÇÃO

É uma desilusão
este deus a que me habituei,
recebe-me na sua casa do céu,
conversamos, trocamos ideias,
almoçamos juntos,
manifestamos as nossas aflições.
O ser autêntico ou não
depende da devoção.
É hirta esta divindade,
cobra a hospedagem
com taxa incluída
para visitantes da Terra.
Se o problema que pomos
se complica
dispõe de um anjo menor
que trata da burocracia.
A viagem foi longa
sem direito a visita guiada
pelos jardins do Éden.
O anjo de serviço
recomenda velas,
joelhos em sangue,
o credo sempre,
nunca porquês.

CRER


Victor Silva Barros
CRER

Antes do Verão
terei lido inteirinho
OS LOUCOS
DA RUA MEZER.
Creditarei 30 poemas
retratando o quotidiano.
Tentarei pela enésima vez
aprender Inglês.
Sairei da piscina municipal
a nadar o essencial.
Sonharei para o meu país
um crescimento de seis por cento
ao ano,
com políticos capazes,
impolutos, audazes,
com soluções capazes
de mudar o rumo.
O horizonte continua nebuloso
mas eu ainda creio.