quarta-feira, 27 de junho de 2018

VIVA PORTUGAL


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VIVA PORTUGAL

A menina
do quinto esquerdo
à janela,
linda, de pele macia,
vestida a rigor
de vermelho e verde,
agita a bandeira pátria.
A televisão em alto som
transmite os resultados
do jogo decisivo
Portugal - Irão.
O seu corpo moço
estremece,
solta-se jorrando emoção,
golo, golo, golo,
do Quaresma
e desta pequena nação. 

O MEU POMAR

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O MEU POMAR 

O meu pomar
não tem damascos,
preguiçosas as árvores
dão ano sim, ano não,
deixando-me
neste desconsolo,
só aliviado
para o ano que vem.
Tem ameixas, pêssegos,
cerejas, maçãs e peras
amaciando a canícula
do Verão.
O fogo do calor
varre tudo,
amadurecem os frutos
de uma assentada.
Ponho a chaleira ao lume,
um chá de lúcia lima
refresca mais
que uma golada
de água gelada.
As palavras brotam
amontoadas,
como as framboeasa
sobrepostas
num prato raso,
vai nascer mais um poema.

DESCRIÇÃO


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DESCRIÇÃO  

A lua esgueira-se
por detrás do telhado cinza,
inclinado.
O anoitecer
está tão calmo,
pode-se contar as luzes
na ponte de D. Luís.
O dia desaparece,
o rio cantareja
sobre as rochas esverdeadas
e lá vai, lá vai
contente a caminho da foz.

PRESSÁGIO


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PRESSÁGIO  

Um barco apinhado,
a sede transpira
nos rostos suados,
onde ides ó fugitivos?
a Europa não vos quer.
Olha apenas
a sua barriga farta,
o medo fica estático
detrás de muros medonhos
de indiferença recalcada.
A fome é maior que tudo,
um dia os muros cairão
à força dos desiquilibrios.
A Itália chorará, Chipre,
Grécia, Turquia, Áustria,
Polónia, República Checa,
vandalizados por vilipandiados
a quem retiraram tudo,
até a esperança.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

NO MEIO

Esther Molinero

NO MEIO 

Estar-se vivo
ouvindo o respirar
na sala excêntrica,
datada,
maples de napa
coberturas de crochet.
Lá fora alguém grita,
faça-se qualquer coisa.
Chove, não chove,
o calor aperta, sufoca,
é penoso arrastar os pés na rua.
A esplanada aguarda,
sombra, uma sangria,
a água a jorrar na fonte.
Uma ninfa solta-se
do meio das demais,
espreguiça-se na cadeira
do meu lado,
bora lá, vamos fabricar um poema?

PAISAGEM MATINAL

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PAISAGEM MATINAL 

Cada manhã,
debaixo da janela aberta
do quarto a nascente,
o riacho Oana
marulha sem cessar.
Os limos verdes
pendem sobre as margens.
os peixes dourados
esgueiram-se aos anzóis
aproveitando
a boleia da corrente.
O céu plúmbeo
anuncia chuva,
lava o rio, leva as mágoas.
O moínho velho
pouco labuta,
de longe a longe
moí um saco de milho.
Neste bucólico lugar
escrevo à tardinha
no meu caderno de linhas
mais uns poemas.

FIM

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FIM 

Acabou.
Findou.
Não há mais poemas
com luas dentro,
sóis incendários
iluminando o escuro,
ópera escutada  a dois,
sentados em cadeirões
de um teatro antigo.
As lembranças diluem-se
deixam lentamente
a alma.
Desapareceu
o que nos ligava, adeus!

MEMÓRIAS

Isolino Vaz

MEMÓRIAS 

Tão distante
o meu avô paterno
anafado, grande,
no leito deitado
As velhas da família
chegando-se,
pratos de aletria,
leite creme,
pousados na mesa
de cabeceira.
Para meu espanto
o dedo do meu avô
indicava
que eu sua neta
comesse as iguarias.
É a minha lembrança
dele,
depois desapareceu.
A família agastada
de luto vestida,
lágrimas, flores,
um retrato na parede
tocando violão,
ficou-me  dele
o seu fim,
para toda a vida.

POBRES TEMPOS


Ana Cristina Dias
POBRES TEMPOS

Um risco vermelho
mancha a brancura da parede,
a alma sangra
em ferida exposta,
as gaivotas nervosas
atacam alvos ao acaso,
crianças são engaioladas
enquanto os pais são interrogados,
em Itália querem-se os ciganos
em listas fixados,
e pode-se exterminá-los?
A fome passeia na tórrida África,
onde  cristãos são chacinados,
na América Latina mata-se,
mata-se, mata-se,
no Médio Oriente enlata-se
a liberdade.
Os credos servem o poder,
sem permissão traçam em dor
a todos um sombrio destino.

terça-feira, 12 de junho de 2018

JORNAIS



J. Valcárcel
JORNAIS 

Entre cada virar de página
de um jornal diário
e um golo de café quente
naquele boteco familiar,
tudo é um ritual.
O que me seduz
são as  notícias
comezinhas, de pé de página,
as não editadas, com verdade,
as infames sem rede,
as azedas sem arandos ou chocolate.
De resto, que dizer da violência
gratuita, suja,
repetida com insistência doentia,
as notícias tontas  de um jet sete
inexistente,
as ondas de corrupção
envolvendo tantos
que de tantos é difícil processá-los.
Teias que me escapam
entre os vapores do café
e a doçura da nata.
Já não há linhas editoriais,
manda o dinheiro, reina o capital.

ENIGMA DESVENDADO


Victor Silva Barros
ENIGMA DESVENDADO 

Levantou o sobrolho o vigário
quando a criança ajoelhada
no degrau do confessionário
à pergunta de quem és filha
obteve de resposta
é o senhor vigário.
Só sossegou o septuagenário
deslindado o enigma,
a família da rapariga
tinha como alcunha
o título eclisiástico
do padre da freguesia.
Que alívio...

VERÕES

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VERÕES 

Quando as pêras se mostram
pendidas, pesadas,
nos ramos fragilizados,
estendo as mãos e colho-as.
Levo-as até à cozinha,
corto em tirinhas a polpa doce e macia
e faço doce temperado com canela.
Duram meses envolvidas
no ponto pérola de açúcar amarelo,
fechadas em potes redondos
com fitinhas coloridas.
São o desejo de mais verões
onde o olhar pousava nos pássaros
voando com eles para outras galáxias.

RESTOS


Collado
RESTOS

Tiveram sempre um disponível colo
pronto, macio, acolhedor,
abraços de dia e de noite
sem regatear,
uma mesa farta a preceito,
grandes frascos de compota,
queijo fresco,
café acabado de fazer.
Lágrimas sentidas
por cada partida programada,
sorrisos largos às chegadas.
Desses tempos nada resta
até o toldo branco
abrigando as festarolas
esgueirou-se no vento.
Cada um para seu lado
esquecido o passado
nenhum retorno é possível.

terça-feira, 5 de junho de 2018

À ESPERA DA CONFISSÃO



À ESPERA DA CONFISSÃO 

Páscoa 1965,
umas senhoras, muito senhoras
falando baixo,
usando um véu pardo
cobrindo o cabelo,
dois cavalheiros sisudos
mostrando-se agastados
pelo tempo de espera,
umas criancinhas malcriadas
correndo à volta do confessionário,
Um casal de namorados
vai até ao adro pôr a conversa em dia,
uma jovem delambida,
espera sem stress o padre coadjutor,
a minha mãe enervada
espera os bifes
que me mandou comprar
para o jantar.
Eu sem pingo de sangue
na fila interminável
da desobriga.

DESEJO

Luís Morgadinho

DESEJO 

Na cama do hospital
com dores pós-operatório
na garganta,
pedia um comprimido só
para aliviar as picadelas
e um ramo de rosas,
grande, grande,
como vira um dia
num filme de Hollywood.

PERGUNTA


Alberto Ulloa
PERGUNTA 

Mãe
quando chegará o momento
de ser eu completamente,
esquecer o pedir licença
para tudo,
viver, não imaginar,
escrever a própria história
nem que seja ela trivial
como o pardal
procurando a migalha no regaço
da padeira mais velha do Bolhão.