terça-feira, 27 de novembro de 2018

UM DIA DE CHUVA

Carlos Almeida
UM DIA DE CHUVA  

Os pássaros voam baixo,
a cidade enegrece,
os lampiões cintilam
nos intervalos das casas.
Os passos apressam-se
ocultando a beleza da arquitectura
secular e sólida
com granito e vozes garridos.
Tanta chuva, mês de Novembro,
os gatos escafedem-se
em buracos de muros
abraçando edifícios
votados a soçobrar.
Os turistas fugidios
arrastam as capas longas,
entram nos cafés iluminados,
pedem do vinho de Porto,
rabanadas doces
envoltas em calda de fruta fresca.
Não se atrevem, por hora
a enfrentar a chuva gelada,
o silêncio da cidade molhada.

ANJOS

Ângelo Vaz
ANJOS  

Os anjos andam por aí
pousam os pés transparentes
nas nuvens esbranquiçadas
e através do telemóvel
enviam-nos mensagens
cifradas.
Estão desfasados
do tempo e realidade
creem-nos demónios
a precisar de ser castrados.
Postam no Instagram
fotografias do céu
insípido e branco,
Deus colhendo flores de bruma,
a Virgem Maria fazendo renda
de espuma.
Os santos rezando terços
não fazendo a diferença
abrem a boca de espanto.
Os fiéis abrigam-se
dos dissabores da vida
na capelinha da aldeia
e pedem a quem está mais próximo,
o anjo da guarda,
que lhes deite a mão
nas horas de silêncio aflito.

ACREDITAR

Collado
ACREDITAR  

Luz solar
tão real como a realidade
não deixa a sombra ensombrar
 a esperança que sobra
nas dobras dos olhos cansados
de esperar.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

UMA CIDADE NOVA

Chucho
UMA CIDADE NOVA 

O ruído é intenso
entre a demolição
e o estertor da caliça
caindo ao chão.
Cai o detalhe
do balaústre feito à mão,
das sancas trabalhadas,
dos florões nos tetos altos,
do soalho em castanho
de tábuas largas,
das claraboias
pássaros bailando
nos telhados musgosos.
Ficam as fachadas
tudo o resto é novo.
Por dentro pladur,
soalhos flutuantes,
janelas em PVC
e outras estruturas
sem personalidade.
Estranho
a destruição de portas
embandeiras
de vidros coloridos
qual catedral inundada
de luz e espiritualidade,
rebordos em granito
denso e cinza.
Entradas com azulejos árabes,
lampiões de ferro forjado.
Dentro das casas renovadas
é tudo branco, assético,
impessoal
como os quartos de um hospital.

PORTA

Collado
PORTA

Era uma porta velha
com fissuras
de ventos e temporais,
porta de carvalho ressequido,
forte como aço
e aconchegante no abraço
com que nos recebia.
No Natal a criançada
entrava algariada
com prendas coloridas
penduradas nos olhos claros.
A avó atarefada, na cozinha
oferecia coscorões e rabanadas,
o calor da lareira acesa
e um beijo repenicado.
Pela porta aberta a todos
os de boa vontade
entrou alegria, tristeza,
o médico na hora da doença,
o padre com o cristo redentor
que se beijava na Páscoa.
Os familiares próximos
e os amigos chegados,
os vizinhos com recados,
e pedintes fixos
buscando o soldo ajustado
e semanal.
Durou, durou, durou
o tempo que a matriarca ficou
à frente daquela casa.
Hoje é uma ruína à espera
que alguém a cobice
e inicie uma nova vida
entrando com gosto
pela vetusta porta
firme e disposta a abrir-se
a outra realidade.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

POEMA

collado
POEMA

Quando o último raio de sol
pousa sobre a mesa
o café da chávena
fica mais brilhante,
o meu corpo imperfeito
estremece,
a mão direita freneticamente
procura uma caneta
e nasce um  outro poema.
Cada um tem o álcool que merece.

DIA DE OUTONO

collado

DIA DE OUTONO

O sofá é grande,
uma manta protege o corpo
frio,
dois cálices de Porto
é demais.
O telejornal desencantado
na edição das oito,
deixo passar o tempo,
a depressão Catrina
empurra os ramos das árvores
em dança furiosa
contra a janela.
Os olhos perdidos,
os pés nos chinelos,
o dia valeu a pena
porque fiz dois poemas.
É noite escura,
as crianças da vizinhança
choram alto,
por um instante
o prédio é deles,
a sua liberdade
cabe dentro de um quadrado,
o choro atravessa as paredes
e chove torrencialmente.