quarta-feira, 24 de setembro de 2014

EMBRIAGUEZ

Adriana Exeni
EMBRIAGUEZ

Às vezes fazem-nos calar
oferecendo-nos prémios em sorteios,
festas pimba, nos terreiros,
das várias cidades do país!
Os mais intelectuais esquecem tudo
lendo livros clássicos
e vendo filmes de Bergman!
As tascas cheias de pipas,
garrafas,
convidam à embriaguez!
A vida actual é tão pornográfica
que frente a ela
quem vende o corpo
é menina de coro!
O futebol proporciona a alienação,
os políticos mentem,
constroem muros,
continua a solidão!
A chuva varre tudo,
os turistas afluem à terra barata,
os chineses compram casas,
os negócios circulam
nas mesmas mãos,
os sem tecto
cheiram mal nos cantos da cidade!
Um menino vestido de marujo
escreve numa parede qualquer
mereço outro país!

NÓS

Conceição Mendes
NÓS

Somos nós
suando cada manhã
num autocarro lotado,
chegando ao trabalho
já cansados,
arregaçando as mangas,
ajeitando a postura,
trabalhando no duro
oito horas
com poucos intervalos!
Dia a dia,
mês a mês,
repondo à nação
o que outros retiraram!
Onde era aridez
fizemos a rega diária,
munimo-nos de asas
voámos para o futuro!
Eles conhecem tudo,
os nossos olhos rasgados,
prontos a viver do fado,
mas também da doçura
de um lugar cativo
neste país antigo!
A nossa missão é erguer,
a vossa derrubar
o que estava alicerçado!
Da liberdade
querem fazer escravidão,
da educação, ignorância,
da saúde, morte,
das prestações sociais, cortes!
País sem norte,
templo sem fiéis,
não se valoriza o trabalho,
tão só a especulação!
Com paciência e a ciência
que ministraram anteriores governos,
voltaremos a cortar pão na mesa,
a misturar no pátio velho
muita alegria tonta!
Dos escombros,
ergue-se de novo  um coração,
batendo compassadamente
na dimensão da construção!

A FORÇA DA PALAVRA

Jorge Murillo Torrico
A FORÇA DA PALAVRA

Falar-vos-ei todos os dias
do vento refrescante,
do odor a maresia
a cada maré cheia,
da cor azul do céu,
no Verão que começou tardio!
Da luta por fazer,
do país para erguer,
de nós precisando de paixão
para tocar o barco avariado
que nos coube em sorteio!

SILÊNCIOS

Jordi
SILÊNCIOS

Noites e noites
sentados no sofá
em frente à televisão,
comemos amendoins
descascados,
refrescos de ananás e hortelã,
calados,
absolutamente calados,
esbugalhámos os olhos
à vida acontecida
na trama das novelas,
em silêncios,
cenários adaptados
a nós,
esgotadas que estão as palavras!
O infinito separa-nos,
à distância os pardais
batem desesperadamente as asas
para continuarem a voar!
Impávidos
não mudámos sequer de canal,
morreu-se-nos a ânsia
de continuar
a existir!

terça-feira, 16 de setembro de 2014

LEMBRANÇAS

Carlos Dugos
LEMBRANÇAS  

Ainda me lembro do teu cheiro,
da crispação dos teus cabelos
revoltosos,
do gostar do teu olhar!
Da elegância do teu andar,
quase voar,
quase dançar,
e do modo como cruzavas
os braços
ao admirar a beleza
dos lugares!
Entrosavas-te rapidamente
nas tascas dos Clérigos
a comer cozido
e  nos salões com espelhos
dourados,
iluminados
por lustres de cristal veneziano,
a beber cup de champanhe rosé!
Da roupa pouco te importavas,
nem do sítio
onde a deixavas,
o banho matinal
era fundamental
para um bom começo diário!
Estas lembranças almofada
não esmagam,
não esfrangalham,
não deitam achas
na turbulência da vida!

AMBOS

José Rasquinho
AMBOS  

Ambos esperamos ainda
um dia acontecido,
brilhante,
com saber servido à mesa
como se fosse um cocktail,
seguro,
um salário justo,
não esmola como hoje!
Ambos,
queremos tudo partilhado,
a vida,
o dinheiro,
a alegria,
o éden sonhado!

GEBO

Silvana Violante
GEBO      

Eu sou o gebo
que te sustenta,
acerto diariamente
o caminho errado
que calcorreias!
Olho-te diariamente,
pouco vejo,
sorrio  por vezes,
mas não sei por onde vamos!
Comunicámos em línguas
distintas
e tomámos chá de tédio
todos os Domingos
ao fim da tarde!
Enfastiados
nada construímos juntos,
esperando que a corda bamba
se desfaça,
e, cada um tome o seu rumo!

DIA VULGAR

MARVEL
DIA VULGAR  

Como sempre saíste
para o escritório,
nesta manhã calma,
ajeitaste a gravata
ao espelho
por cima da cómoda,
puseste o lenço
na lapela,
a condizer com o casaco
de linho indiano!
Ao entrares no elevador
subiu-te um friozinho
até ao nariz
e espirraste
ao lembrares-te
do chefe,
irremediavelmente chefe!
Pode cair um raio,
descarrilar o eléctrico,
desnudar-se alguém na rua,
espera-te a secretária,
o computador,
a contabilidade estática,
a firma esperando sobreviver,
um café a meio da manhã,
o dia a escoar-se
sem nada de relevante,
a não ser alguns factos
extravagantes,
comentadas à noite no telejornal!

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

PERFUME DE MULHER

Victor Silva Barros
PERFUME DE MULHER  

Na rua de Santa Catarina
num dia movimentado,
tendo o olfacto apurado,
consigo seguir o rasto
de perfume a violeta!
A fragância forte
é de alguém extravagante,
que balança o andar,
que lança com fúria o olhar,
para quem ousa criticar
o seu lenço verde e branco,
de seda fina
tecida em Benim,
esvoaçante,
dançarino,
cobrindo o cabelo cobalto,
de quem dá tudo
no palco da vida!
Meticuloso,
em passo apressado,
corro atrás dela
com um ramo de tulipas
para lhe pôr no regaço!
A mulher voltejando
como abelha na colmeia,
pára um segundo
e atira-me um beijo!

A NECESSIDADE DE ESCREVER

Collado
A NECESSIDADE DE ESCREVER

Comprei um caderno grande,
muitas esferográficas
de ponta fina,
sim,
escrevo à moda antiga,
riscando,
reescrevendo,
emendando,
até nascer o poema!
A melodia da poesia
é como uma canção
ditada pela emoção!
Chega presa,
não rola,
até que uma ponta
se solta,
e em torrente,
fica presente no papel
o novo poema!

ALGUÉM


Izabella Pavlushko
ALGUÉM

Alguém me pega na mão
e me pede perdão
por me ter magoado,
subtraio as cicatrizes,
minimizo
a mácula do passado!
Preparo um jantar
volante,
ostras temperadas com limão,
truta vermelha em ceviche,
guacamole com bastante lima,
Morangos com chocolate,
champanhe  muito gelado
para festejar!

A NOSSA CONDIÇÃO

Ny Machado
A NOSSA CONDIÇÃO

Se fossemos anjos,
tivéssemos asas,
para conduzir
a fragilidade humana,
neste ataque perpectuado
e planeado com todo o rigor!
Tiram-nos o livre arbítrio
e dão-nos de presente
um capitalismo selvagem,
em dor!
O mundo é hoje
um mar lamacento,
sem sorrisos,
pensam eles
que se pode enriquecer
sem gente!
Seremos em breve
uma raça condenada
se não nos libertarmos
da amarra
dos senhores do capital!

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

TROLHA

Izabella Pavlushko

TROLHA

Comprou uma bicicleta
em segunda mão,
o ordenado não chega
para estrear seja o que for!
Acorda cedo de manhã,
prepara a marmita
prende-a com elásticos
à bicicleta!
Pedala energicamente
é preciso chegar a tempo
contentando o patrão,
a namorada,
que espera a sua chegada
e a rosa encarnada
espetada no selim!
A Rosa Maria
é empregada na mercearia
onde bebe a cervejola
que o descedenta ao fim do dia!
Operário da construção civil
é um fado,
trolha sem opção
pagando todos os meses à nação
o imposto por existir!

REFEIÇÃO

Collado
REFEIÇÃO 

Acosto-me na mesa
em último lugar,
cumprimento todos,
bebo um copo de vinho tinto
com prazer,
trinco umas tapas de presunto
curado,
preparadas pelo Manel!
Com conversa fiada
espera-se pelo cabrito montês,
assado no forno com batatas,
temperado de ervas frescas!
Acelera-se a gulodice
com a antevisão da sobremesa:
taça em camadas
com pão-de-ló,
creme de lima,
infusão de frutos vermelhos,
montes de chantilly
adoçado com pepitas de chocolate!
Partilhar a vida
como acontece,
calmamente,
as moléstias, as alegrias,
os sonhos, as desconstruções!
Lavar a alma à mesa da refeição,
hoje não escrevo poemas!