terça-feira, 23 de junho de 2020

SEM SENSO


 MARIA TEREZA BRAZ

SEM SENSO  

Sabes Teresa
minha vizinha ,
tu que te entreténs
a alimentar as pombas
todas as manhãs,
não podes também saciar
os gatos vadios,
o pátio do condomínio
não é abrigo de animais.

DESEJO

Maria Ivone Bergamini

DESEJO  

Um parente meu
que não se esforçava
por ser qualquer coisa
válida na vida,
perante a questão
o que queres ser
quando fores grande
responde :pai .

VIZINHA

Joaquim Durão
VIZINHA  

A minha vizinha bisbilhoteira
enredava-se entre o parapeito
da janela e o dorso dos condóminos
até lhes extrair todos os segredos

ESQUECIMENTO



Regina Mehler
ESQUECIMENTO  

Não me lembro
de ter querido,
em criança,
aprender algo específico.
de ler gostava muito.

ELOGIO

COLLADO

ELOGIO  

Um aluno meu
ao cumprimentar-me disse:
que pele tão macia,
eu estranhei,
só uso pela manhã
um creme hidratante
da Diadermine.

O ESPILRO

Octavi Intente

O ESPILRO  

Quereres sem senso
adormecer debaixo
do telheiro,
a neblina era tanta
que trespassou o casacão
e pôs-te a espilrar o dia inteiro.

LUA

Carlos Godinho

LUA  

Quando se olha a Lua
para a poder guardar,
a desilusão é maior
por não haver lugar
nem cerimonial para tal.

PASSADO

Isolino Vaz

PASSADO 

Pensa-se no passado
como se ele pudesse
regressar ,
os anos contar-se-iam
da frente para trás,
a minha mãe
costuraria laçarotes
para colocar na cabeça
das suas quatro raparigas,
pentearia os dois rapazes
abusando da brilhantina.

DIZER

Joaquim António

DIZER

Digo Domingo
que é a seguir ao sábado.
Digo mil-folhas,
fofo de claras
desfazendo-se na boca.
Digo cidade renovando-se
estrafegando os velhos
moradores
expulsos de suas casas.
Digo ruas da baixa
desalinhadas, sujas,
postos no prego os pregões,
as canastras das varinas
sem voz e desempregadas .
Digo senis os Edis
virando caras aos seus
a troco de alguns Euros.
Digo cidade minha
tão próxima e tão vazia.

SENHORES DO MUNDO

OCTAVI INTENTE

SENHORES DO MUNDO

Eles teimam
em fazer a guerra,
sempre a mesma
mudadas as circunstâncias
geo-estratégicas
e ou economicistas.
Jogam as vidas
em tabuleiros de xadrez
de madre-pérola sangrenta,
guardados em gabinetes
sombrios e dourados.
Quem morre               
são sempre os soldados
levados pela mão
de uma grei desnorteada
até ao sacrifício
em altar humilhante.
E os civis apanhados
num espanto desesperado,
pássaros feridos
em lume de fogos cruzados.

POESIA


José Gonzalez Collado

POESIA

Pela poesia
é que vamos
deixando nos poema
as nossas mágoas.


DEUS

(foto tirada em Tarifa)
DEUS

Deus  é o capital seguro
quando não temos mais nada,
recorremos a ele na esperança
que apareça e nos dê um abraço.
Somos seus companheiros
desavindos,
bocadinhos de átomos
girando à volta do Sol maior,
ouve-nos quase sempre
sem nunca apontar o dedo.

POEMA


JORGE AGRA

POEMA

Quem sabe se
esse teu rosto rosado,
os dedos magros e compridos
serão maçãs descascando-se
para a tarte do lanche ao fim da tarde.
A ânsia de ir é enorme
para um lugar qualquer
longe daqui e de todos
os anisados, nem carne , nem peixe,
um atraso.
Os dentes mastigam devagar
a fatia de tarte perfeita,
nós rimo-nos
como consequência natural
do contentamento por algo doce .
Bebamos o chá amornado,
crianças nos tornámos
enrolando-nos num colo
de mãe presente .
Fugidio o momento,
nós limpos de sarnas
não somos uns quaisquer
sentados numa sala imensa,
somos o ultimo raio de sol
aquecendo os corpos frios.

quarta-feira, 4 de março de 2020

JOGAR COM AS PALAVRAS 7

Sara Perez


JOGAR COM AS PALAVRAS 7

Como se chama
a quem cegou o meu coração
e lhe deixou
uns óculos escuros dependurados?

DIA 3 DE MARÇO



DIA 3 DE MARÇO

Ulmeiros
vergastados pela chuva,
o dia de granito.
O tempo agastado,
escondido no escuro
das coberturas das entradas.
Os sinos da igreja
rompendo a aurora,
triste mês de Março
de pessoas fugidas
da peste e da vida.
Os músicos meio perdidos
dedilham a viola na esquina,
o moço loiro
dá o olhar azul
à moça do seu lado.
Juntam-se as mãos
para sorver o café negro, doce,
o nevoeiro é cerrado.
Uma gaivota pousa
na ponta da mesa,
dá uma bicada
no croissant dourado.
Ah, boca de espanto
querendo pérolas rebolando,
quando vem a Primavera,
eu estou esperando.

Octávio de Sousa e Silva

DOURO


DOURO

De repente,
a correnteza do rio parou,
o olhar sôfrego
sorveu a paisagem mágica,
a máquina fotográfica
captou o momento ,
todos estávamos felizes .
Na subida lenta
a caminho da Régua,
busca-se a leveza,
o esquecimento das mágoas.
A surpresa,
é oferecido um cálice de uvas,
apanhadas no Outono,
pisadas por pés bravos,
escorregando quentes,
fazendo o dia acontecer.
Demorámos a empacotar
a viagem,
a catalogá-la,
bom, bom, foi fazê-la.
Um flash, um arrepio,
o odor do rio,
que galgando as margens
cai no meu regaço flanqueado.


Dina de Sousa

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

ROMÃ

Helena Canotilho
ROMÃ
O menino abriu a romã
batendo-lhe com
uma colher de pau.
Não lhe queria
comer os bagos,
queria só e apenas contá-los,
fazer deles um colar
oferenda à sua mãe
que fazia anos.

COISAS DO TEMPO

Tomas Santis

COISAS DO TEMPO  

A fogueira crepita
nesta longa noite de Inverno.
A chuva cai violenta
no tejadilho dos carros
na rua alinhados.
A criança pergunta
porque chove tanto?
Para que serve tanta água?
Os homens pouco sabem,
de sábios nada têm
deixam a água escorrer para o mar
e depois queixam-se da seca.

BOM DIA

Carlos Dugos
BOM DIA

Ao acordar
belas são as pombas
pousadas nos ulmeiros,
as gatas da vizinha
dormindo no alpendre,
o Sr. Zé carteiro 
tomando o pequeno almoço
no café da esquina.
Eu penteando-me
frente ao velho espelho
a claridade de sol
tornando luminoso o dia.
O caderno passado
na mesa da sala,
o poema que pede para nascer.
Linda manhã
atapetando a rua
de mil bugambilias,
bom dia senhor jardineiro
cortando a relva da casa ao lado.
Lindos os homens e mulheres
correndo em direcção ao trabalho,
o azul dos liretes
dançando ao sabor do vento .
A gente da casa tomando
a chuveirada apressada,
a janela fosca
de pó e nevoeiro
rasgando-se para o sol entrar.
Lindo o café que cai
ruidosamente na chávena,
as migalhas sacudidas
da varanda da mansarda.
Hoje acordei assim,

bom dia .

INFÂNCIA


Anabela Mendes da Silva
INFÂNCIA  

Na árvore do quintal
os pêssegos dependurados,
dourados e perfeitos
na proporção exacta
das nossas bocas esfomeadas .
O pardal esvoaçou
e baloiçou noutro ramo,
doutra árvore do quintal,
uma macieira.
Nem sei que sentimentos
eram aqueles,
naquela infância despreocupada,
a imensidão dos quintais,
a liberdade total,
o tempo ilimitado.
tanto ruído: dos bichos,
do cantarolar das lavradeiras,
do chiar dos carros de bois,
tanto silêncio
para extravasar o pensamento
para lá dos pinheiros altos
dos montes circundantes.
O sol a pino,
o suor que escorria,
a leve beleza
do dia simplesmente a acontecer.

A MINHA COMUNHÃO SOLENE

Orlando Falcão

A MINHA COMUNHÃO SOLENE  

Afirmo com todas as letras
que o meu avó chorou
quando eu de bordado inglês
vestida, pequena, inocente,
participei na procissão 
da Festa do Corpo de Deus,
que agregava a nossa Comunhão
Solene.
Abriu-me a mão
em gesto desajeitado
e meteu-me na palma aberta
uma nota de vinte escudos,
vinte vezes dobrada:
não gastes mal gasto,
disse-o numa voz tremida
pela comoção do momento.
Eu chorei depois
nunca havia recebido
tão generosa oferta.
A festança o normal:
a canja fumegante,
o galarote assado,
o pudim francês
feito a preceito pela minha avó
É possível descrever com exactidão
cada segundo, cada minuto
do meu contentamento interior .
Os sentimentos guardo-os no coração
embrulhados na nota
que me deu o meu avó.
Por fim, o retrato,
entre o meu pai e a minha mãe,
em pose convencional
para pendurar na sala
como recordação

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

VIDA 3

Carlos Almeida

VIDA 3

O sol declina no mar
hoje agitado e rude
apontando um horizonte
sem fim nem princípio.
Os barcos vão nas ondas
sem norte e sem regresso.
Um casalinho agastado
apenas com o vento
agarra-se ao murete
beija-se apaixonadamente.
A areia bate forte
nas pernas musculadas
de um pescador furtivo.
O laranja do sol
é mais brilho
nos olhos da pequenada
regressando do infantário.
Ai momentos vividos
na praia da minha infância:
Espinho.
Os picolés de baunilha
escorrendo nas caras
de espanto esbugalhadas.
Os pregões das varinas
vendendo camarão da costa
em canastrinhas encantadas.
O coração batendo apressado
soltando os sonhos
de um amanhã demorado.

VIDA 2

Mary Carmen Calviño

VIDA 2

Enquanto alguém
destila ódio
porque é ódio,
eu olho a natureza
e digo: é belo o que vejo.

VIDA 1

Carlos Dugos
VIDA 1

Ergo-me
é o que me assiste
enquanto me restar o fôlego.
O espaço que separa
a cozinha da cama é pequeno.
É preciso o café
de subtil aroma
e as torradas
de azeite do Doiro.
A noite foi calma
sem pesadelos,
sossega o corpo
para o novo dia
que se avizinhava.
Escolho palavra a palavra
para o poema a fazer,
o poema com que
me levanto.
Bom dia vida,
bom dia a mim
que respiro
apesar das notícias
dos jornais.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

DESPERTAR


Gilberto Lopes
DESPERTAR   

O desenho da luz
do nascer do dia
marcou as janelas
da sala de jantar.
Iluminou-se toda
como se estivessemos
numa cidade sem noite:
Paris .
O sol marcava
o romper da aurora,
a jornada que começava.
Cada um escapuliu-se
para o trabalho
que lhe era destinado:
estudar ou labutar,
a mãe dizia: é preciso trabalhar.
De repente o céu
Pintou-se de nuvens,
borrasca anunciada ?
o vento frio incomodava,
procuram-se agasalhos.
Cuidado com as correntes de ar,
pedia a minha avó velhinha.
Depois voltava o silêncio
àquela casa,
cortado pelo cantar do galo
e pelo gato que miava.



segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

INVERNO

JORGE RODRIGUES




INVERNO 

No Inverno
o nevoeiro tapa os olhos,
o vento desmancha os cabelos,
deixando-nos agastados .
As árvores despidas, sem folhas,
apodrecidas em cima dos lajedos.
Os guarda-chuvas atrapalham
a chuva miudinha e certa
penetrando até à medula
nas ruas meio desertas.
Os meninos da escola
passam agitados
para ver uma peça infantil
no teatro Rivoli
A natureza atira-nos
os elementos funestos
vá lá aguentá-los
são da época .


segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

MENINICE

MENINICE

Já tive oito anos,
andava aí pela terceira classe
com a D. Alice à perna,
aguentando as reguadas.
Gorduchinha com ondulado
de permanente, a quente,
não sei como aguentava
a miséria escrita nos corpos
e no olhar dos seus alunos .
Pegava-se a falta de tudo
à sala fria e triste,
sem recursos, sem flores.
Pequenos éramos e tão maduros
dividindo pelos outros
a pouco merenda que levávamos.
No recreio infantis e crus
empurrando os demais
em lutas desastradas.
A diferença entre nós é que
uns tinham sapatos,
a maioria socos, alguns
os pés descalços e frieiras
sobre o lajedo frio
da velha e cinza escola.


Amália Soares